terça-feira, 14 de outubro de 2025
“Tempo de calar e tempo de falar”
Padre João Medeiros Filho
O descompromisso com a verdade é cada vez maior. Nutrem-se
a divulgação de notícias falsas e a manipulação de informações, em função de conveniências
e interesses escusos. As tecnologias comunicacionais facilitam opinar sobre todos
e tudo. Uma vez a verdade comprometida, a sociedade perde o rumo, dificilmente
encontrando caminhos promissores. Tudo tem seu tempo certo, “tempo de calar e
tempo de falar” (Ecl 3,1; 7). Quando se deve falar? E quando é oportuno e
eficaz calar-se? São Gregório Magno ensinava: “Seja discreto no silêncio e útil
com suas palavras, para não falar o que deve calar, nem silenciar quando é
necessário falar.” Sobre os pilares da fala e do silêncio fundamentam-se a sociedade, a cooperação mútua, a defesa da Justiça e do Bem.
Hoje, multiplicam-se escolas de oratória, imitação dos
retores da Grécia e Roma antigas. No entanto, inexistem cursos para ensinar o
que convém ou se necessita dizer. Ao se utilizar a palavra de modo superficial,
comprometem-se os entendimentos, alimentando-se atitudes pouco eficazes para
gerar o Bem. Assim, a sociedade permanece empobrecida, prejudicando o exercício
da cidadania. Expressar-se com superficialidade faz com que os sistemas
linguísticos disponíveis, em vez de contribuir para a aproximação, acabem construindo
uma nova Babel, aprisionando a cidadania na confusão. É lastimável, quando a fala de quem representa o povo é permeada por mediocridades,
sofismas, mentiras e narrativas. Inaceitável priorizar-se somente o interesse
de partidos políticos ou grupos ideológicos. Lamentável, quando se objetiva
somente conquistar certas metas, alheias ao bem comum. Deplorável presenciar as
relações familiares, profissionais, políticas ou governamentais orientadas
frequentemente por parâmetros de frivolidade.
A incapacidade para falar o que é preciso, isento de
inverdades, é sinal de uma falha grave na condição ética e moral do indivíduo e
da sociedade. Quem tem a coragem de viver e falar sob o manto da verdade (algo
raro nestes tempos de tantas manipulações) contribuirá para a formação de
cidadãos autênticos. As comissões parlamentares de inquérito, tendo em vista as
inverdades e falta de compromisso com a veracidade, exigem do depoente um juramento de dizer sempre a verdade. Entretanto, Pilatos já tinha dúvida a
respeito disso, ao questionar Jesus Cristo: “Quid sit veritas?” (O que é a
verdade? – Jo 18, 38).
Hoje, especialmente, fala-se para agradar ou desconstruir,
mesmo havendo incoerência com as próprias convicções. Certa vez, ouvi Dom José
Delgado, indagando do saudoso Monsenhor Walfredo Gurgel o que ele achava mais
difícil como político. Dissera-lhe, incontinenti: “Viver o Evangelho.” Este
determina: “Seja o vosso sim, sim; e o vosso não seja não” (Mt 5, 37). E, em
seguida arrematou: “Infelizmente, quando os políticos dizem sim, significa
talvez. Quando afirmam talvez, quer dizer não. E se dizem não, certamente não
são políticos.” Em certas situações, a verdade é dita pela metade para alcançar
objetivos pouco nobres. Opiniões e juízos são emitidos sem o conhecimento
adequado da realidade, prejudicando a promoção da justiça, prevalecendo o subjetivismo
e vantagens de alguns. Fala-se a bel prazer para enaltecer ou destruir pessoas.
Recordo-me de tempos no Ministério da Educação. Havia uma
autoridade que costuma me solicitar a redação de três textos (despachos,
pareceres, pronunciamentos etc.): um concedendo, outro indeferindo e o último “enrolando”.
Isso é frequente na vida política e administrativa, plena de subterfúgios e conveniências
e ausência de verdade. Faz lembrar Millôr Fernandes, ao dizer: “As pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de
verdades.”
Mister se faz aprender a falar e calar-se em sociedade.
Nesse sentido, vale remontar ao conceito helênico de “parresia”, dinâmica da
linguagem comprometida com a verdade, imprescindível para uma autêntica
democracia. A postura do apóstolo Paulo pode inspirar modos nobres de
se lidar com a fala. De forma peremptória, assim se expressa na Carta aos Gálatas,
manifestando sua coerência e autenticidade: “Tenho eu buscado a aprovação dos
homens ou a de Deus? Se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Deus”
(Gl 1, 10). O discípulo de
Cristo, segue o que Ele proclamou: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo
14,6).
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Centenário do Educandário Santa Teresinha (Caicó/RN)
Padre João Medeiros Filho
A influência e a importância da Igreja na educação são incontestáveis. Em torno das abadias e mosteiros, catedrais e igrejas, nasceram muitas instituições de ensino. Escolas de padres e freiras formaram gerações. Inesquecíveis o Colégio dos Jesuítas, de João Pessoa, datando de 1747 e o Ginásio do Padre Rolim, fundado em 1848, na cidade de Cajazeiras (PB). No Rio Grande do Norte não foi diferente. A Escola de Latim, do Padre Senador Guerra, criada em 1838, foi um marco na região do Seridó potiguar. Há outros educandários católicos famosos em terras norte-rio-grandenses. Distinguem-se: o Colégio Santa Luzia de Mossoró, datando de 1901; o Imaculada Conceição de Natal, inaugurado em 1902 (fechado em 2012) e o Santo Antônio de Natal (Marista), fundado em 1903. Estes três foram iniciativas de Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, bispo da Paraíba. Inclui-se, dentre as instituições pioneiras cristãs, o Imaculado Coração de Maria, na cidade de Mossoró, nascido do desejo do primeiro bispo potiguar, Dom Joaquim Antônio de Almeida, em 1912. O salmista define a missão de uma escola católica: “Dar-te-ei sabedoria e te instruirei no caminho [do Senhor] a seguir” (Sl 32/31,8). Em 11 de outubro de 1925 surgiu, com as bençãos de Dom José Pereira Alves, terceiro bispo de Natal, o Educandário Santa Teresinha, em Caicó. Desde sua fundação, é dirigido pela Congregação das Filhas do Amor Divino. À época, governava o estado do RN Dr. José Augusto Bezerra de Medeiros. Cristão fervoroso, era padrinho de batismo do Cardeal Dom Eugênio Sales. O Santa Teresinha foi o primeiro estabelecimento de educação católica, destinado à educação feminina no Seridó e também das Filhas do Amor Divino, no nordeste brasileiro. Além do governador do estado, foram benfeitores da referida instituição de ensino Cônego Celso Cicco, pároco de Caicó e o prefeito municipal, Coronel Joel Damasceno. Enquanto se construía o prédio, o colégio funcionou na atual sede da Biblioteca Municipal Olegário Vale. Oito freiras do Amor Divino, coordenadas pela Irmã Teresina Werner, chegaram a Caicó e assumiram o propósito de contribuir para a construção de uma sociedade cristã. Sua missão consistia numa educação capaz de formar pessoas aptas para enfrentar os desafios da sociedade. O objetivo precípuo do Santa Teresinha consiste em proporcionar uma educação feminina integral, alicerçada numa cultura sólida, construída sobre valores cristãos. Por isso, o programa educacional do referido educandário sempre contou, não apenas com atividades curriculares, mas também extracurriculares como práticas espirituais, aulas de canto, música, pintura, bordados, artes etc. Caicó tinha consciência da necessidade de uma educação feminina para as famílias, tornando a mulher dinâmica e participativa na sociedade. Entendeu também que sua inserção social não podia relegar a segundo plano a opção religiosa. No dia 1º de fevereiro de 1926, concluído o edifício, inicia-se o ano letivo, com 72 alunas matriculadas. O nome da instituição recebeu a denominação de Santa Teresinha, homenageando a santa francesa, cuja canonização ocorreu em 17 de maio de 1925. No início do funcionamento acadêmico as religiosas, que não dominavam a língua portuguesa, contrataram professores para ensinar a língua pátria, não só às alunas, mas também às freiras. Naquele ano, o educandário recebeu visitas ilustres: Dr. Washington Luís, Presidente da República, o escritor Mário de Andrade e o folclorista Luís da Câmara Cascudo. Em 1941, passou a oferecer o Curso Comercial de Contabilidade, reconhecido pela Portaria de janeiro de 1948. Em 1943, por iniciativa do primeiro bispo da Diocese, Dom José Delgado de Medeiros, foi instalada a Escola Doméstica Popular Darcy Vargas. Portaria Ministerial (MEC), datada de 1947, concedeu o reconhecimento do Curso Ginasial, já autorizado anteriormente para fins de funcionamento. Em 1971, a designação de Colégio foi substituída pelo nome de Educandário Santa Teresinha. Em 1972, com a reforma do ensino fundamental e médio, o Colégio passou a matricular também alunos do sexo masculino, tornando-se escola mista. Em 2004, o educandário foi ampliado com a oferta do Ensino superior, ministrado na Faculdade Católica Santa Teresinha. Esta foi vendida em 2023 ao Grupo Educacional Sucesso S/S Ltda. Diz o Livro dos Provérbios: “Eu te mostrei as vias da sabedoria e te conduzi pelos caminhos da equidade” (Pr 4, 11).
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Bíblia, Palavra divina e humana
Padre João Medeiros Filho
A Igreja dedica o mês de setembro à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (que a traduziu do aramaico, hebraico e grego para o latim), cuja festa litúrgica é celebrada no dia 30. A Bíblia é Palavra divina e literatura. Apresenta peculiaridades distintas dos estilos literários clássicos. Não raro, verifica-se uma visão distorcida dos textos sagrados. Alguns os concebem de forma literal, isto é, apenas denotativa e não conotativamente. Por meio deles, Deus fala ao ser humano. Isto não significa que nada pode ser questionado. Há uma dimensão metafórica nos Livros Inspirados. É importante saber em que consistem inerrância e inspiração bíblicas, até onde vão sua compreensão e extensão. A forma literária, os discursos, contextos culturais e históricos não são necessariamente inspirados do ponto de vista bíblico-teológico. Tais elementos consistem no contributo das comunidades da época. Dir-se-ia que o Antigo e o Novo Testamento são uma obra em coautoria. O homem dá a sua colaboração, presente no estilo e no modo de narrar ou escrever. Deus inspira conteúdo e mensagem. A literatura tem uma força própria de expressar a realidade, de maneira rica em significados simbólicos. A poesia, em especial, consegue fazê-la de um modo que a linguagem habitual não realiza. A Bíblia é como um grande poema. Há muito mais do que lemos num texto poético. Assim é a Sagrada Escritura. Com o advento dos métodos históricos e críticos (em especial, a “formgeschichte”, teoria das formas), tem-se uma abordagem mais realista dos Textos Sagrados, enquanto produção literária, fazendo superar leituras fundamentalistas e ingênuas. Sem perder o caráter sacro, vai se revelando paulatinamente tecida por mãos humanas. Não se pode esquecer que os escritos bíblicos foram concebidos e grafados, ao longo de séculos, em línguas desconhecidas pela maioria dos leitores atuais. A partir de novas luzes das ciências, identificaram-se nos Livros Inspirados vários estilos e gêneros neles utilizados. Descobriram-se tradições religiosas subjacentes, métodos como os autores trabalharam ao escrevê-los, bem como estruturas literárias e formas. Assim, surgem as abordagens da Sagrada Escritura, sob diversas perspectivas: teológica, sociológica, literária, histórica, antropológica-cultural etc. São enfoques que se completam e ajudam o leitor a penetrar mais profundamente nos Testamentos, percebendo ali a mensagem da Palavra divina. É preciso possuir certos conhecimentos para adentrar no mundo dos Textos e descobrir a mensagem salvífica e libertadora – que se encontra por trás das palavras – revestida de linguagem humana e carga cultural, implícita em qualquer forma de literatura. Isto permite distinguir aquilo que é classificado pelos exegetas e hermeneutas como: “o dito” e “o afirmado.” Há vários exemplos dessa diferença. Veja-se a narração do capítulo 11 do Levítico. Ali, proíbe-se ao povo da Antiga Aliança o consumo de carne suína. Tratava-se, dentro do contexto daquele tempo, de uma proteção à saúde. A mensagem bíblica atualizada não recomendaria, atualmente, o consumo de alimentos gordurosos, processados, contaminados com agrotóxicos, cheios de conservantes e corantes, danosos ao ser humano. A proibição religiosa de ingerir, à época, carne de porco (dito) traz uma mensagem: evitar alimentos nocivos à vida, dom precioso de Deus (afirmado). Assim, a Bíblia é literatura no tocante ao dito. E quanto ao afirmado, é teologia, mística, espiritualidade e Ética. A mensagem está contida no afirmado. E aqui reside a inerrância bíblica, garante a Igreja. O dito é a roupagem literária daquilo que se quer transmitir a mensagem perene (o afirmado). Importa saber que na Sagrada Escritura Deus se faz presente, mesmo quando não referido explicitamente. Cada livro bíblico possui estreita relação com o contexto de origem. Apesar de possuir objetivos e destinatários definidos, tem uma mensagem universal e atual. Por fim, propõe um modo de proceder (Ética e Moral), um saber (conhecimento teológico) que decorre da fé em Deus. Isto faz dos livros bíblicos uma literatura especial, que lhe permite ser chamada Palavra de Deus, revelada aos homens. E no tempo e na história humana, o “Verbo [Cristo] se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14). Jesus é a Palavra Viva, diante da qual expressou Pedro: “A quem iremos, Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Monsenhor Lucas, aniversário sacerdotal
Monsenhor Lucas Batista Neto foi agraciado com muitos carismas e virtudes. Encanta-nos o seu jeito de ser: espontâneo, criativo, disponível, manso, simples e fraterno. Tem a serenidade dos místicos, a ousadia dos jovens e a prudência dos idosos. Sensível, sofre demais, quando tem que dizer não a alguém. Como seguidor de Cristo se compadece dos irmãos, ao sentir a desolação de tantos que parecem “ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36). Suas palavras inspiradas e reconfortantes nos tranquilizam. Suas preces fortalecem a todos. Seu coração de pastor leva-o a rezar pela grei que Cristo lhe confiou. Suplica a Deus por aqueles que acumulam fortunas, mas mendigam o pão da alegria. Roga ao Pai por intelectuais e eruditos, desprovidos de Luz. Intercede pelos que detêm poder e glória, mas carecem de paz. Apieda-se das vítimas de uma solidão povoada. Lamenta por aqueles que falam diversos idiomas, mas desconhecem a linguagem do amor. Rejeita o pecado, mas se condói dos pecadores e lembra Exupéry: “Ninguém é perfeito no país dos homens.” Procura ser próximo, diante de tanta indiferença e individualismo. Monsenhor vive a mensagem do apóstolo Paulo: “Fizme tudo para todos a fim de salvar alguns” (1Cor 9,22). Nosso aniversariante tem o encanto por Deus. Ama encontrar o Eterno na beleza da Palavra Sagrada. Eis porque pediu a Dom Nivaldo Monte que o ungisse sacerdote no Domingo da Bíblia. Ele não lê apenas a Sagrada Escritura, procura vivê-la e sente Deus falando no Saltério do Ofício das Horas. Não cumpre simplesmente o ritual da Missa, é um sedento de Cristo, vivo na transcendência litúrgica. Tudo é manifestação do Eterno. Tem consciência de que “A Bíblia permite-nos penetrar na intimidade de Deus”, como afirmava Santa Edith Stein. 2 Há cinco décadas e meia, Monsenhor Lucas tem sido, nesta Cidade, elo entre Deus e os homens, ponte entre o Eterno e o efêmero, o Divino e o humano. Ele vive a recomendação de Dom Helder Câmara, sobre quem prepara um livro: “Uma coisa tu podes e deves fazer sempre por todos: rezar. Deus escutará a tua prece de homem consagrado.” A Igreja necessita de arautos do Evangelho, que conheçam bem o coração das pessoas, participem de suas alegrias e esperanças, angústias e tristezas, sejam contemplativos e apaixonados pelo Sobrenatural. É preciso que vivam como pais amorosos e irmãos aconchegantes. Nosso homenageado sempre transmite tais sentimentos. Somos gratos, Monsenhor, por buscar romper em nós, seus irmãos na fé, a pretensiosa autossuficiência, convencendo-nos de que só Deus nos basta. Somos gratos pelas belas lições inspiradas no Evangelho, transmitidas em seus programas radiofônicos, retiros, excursões e homilias. Você nasceu profeta. Pregou firme, ao ver fraqueza. Ensinou ternura, ao sentir rigidez. Irradiou amor, quando presenciou insensibilidade ou ira. Ensinou diálogo, quando percebia radicalização. Foi viandante e peregrino no seu profícuo apostolado: em Pendências, Ipanguaçu, São Rafael, Macau e Natal. Demonstrou aos fiéis que a Igreja não possui fronteiras e agrega. Em suas celebrações reúne fiéis de diferentes lugares, condições sociais ou culturais. Hoje, reunimo-nos para expressar nossa gratidão pelo privilégio de seus conselhos, bençãos e amizade. Nós o amamos deveras. O amor dispensa palavras e o reconhecimento é maior do que o discurso. Na singeleza de nossas palavras, queremos externar nosso agradecimento. A gratidão é parte integrante da nobreza da alma. Monsenhor Lucas é manifestação terrena do carinho de Deus por nós. Cabem-lhe bem as palavras de João 3 Paulo I, quando Patriarca de Veneza: “Os sacerdotes valem muito, quando são sacrários do Infinito.” Desafios e lutas acompanham a sua trajetória humana. Participativo e solidário, ainda jovem, Lucas procurou ajudar os pais a educar uma família de onze irmãos. Na juventude chegou a ser frentista de posto de gasolina e sorveteiro. Na infância vendia leite e coalhada, de porta em porta, para ajudar sua mãe, uma santa e heroína. Em todas as dificuldades permaneceu fiel a Deus. Não guarda traumas e recalques por conta de tristezas e decepções. Conservou sempre a alegria em sua alma, a bondade no coração e as mãos estendidas para perdoar e acolher. Pode dizer: “Combati o bom combate, guardei a minha fé” (2Tm 4, 7). Muito lhe deve o Povo de Deus, especialmente a Arquidiocese de Natal, onde desempenhou importantes funções: pároco, vigário episcopal, professor, coordenador estadual do ensino religioso, membro dos conselhos presbiteral e episcopal, consultor arquidiocesano, capelão, diretor de faculdade, criador de mais de trinta pastorais católicas e serviços paroquiais. Foi gigante na preparação para a vinda de São João Paulo II a Natal para o Congresso Eucarístico Nacional. Dentre tantas virtudes que possui, distingue-se pela simplicidade e lhaneza, capacidade de servir, obediência, espírito de fraternidade e alegria cativante. Presença amiga e autenticamente solidária nos momentos de alegrias, dores e tristezas de seus paroquianos, amigos, enfim do Povo de Deus. Já me administrou duas vezes a unção dos enfermos e, quando estou doente ou hospitalizado, nunca me deixou sem o conforto da Eucaristia. Raríssima é a semana em que não está presente nos centros de velório e cemitérios, confortando as famílias e falando sobre a vida em plenitude. Nosso homenageado é um bom pastor, que ama verdadeiramente seu rebanho. “Só quem ama é capaz de ter 4 ouvidos”, dissera o poeta Olavo Bilac. Por isso, sabe escutar. Desse modo, tornou-se muito estimado e respeitado em toda Natal. Sua inspiração brota do Evangelho: a Boa Nova. Lucas prima pela criatividade e disponibilidade. O Cardeal Carlo Martini, arcebispo de Milão, escreveu a seu clero: “Os padres que não são disponíveis não podem ser chamados de discípulos de Cristo, pois o Filho de Deus estava sempre pronto para acolher e perdoar.” Hoje, temos a imensa alegria de agradecer ao Senhor da Vida por ter um irmão tão querido pelo Povo de Deus. É amado, porque irradia Deus e sua paz a tantos nesta Cidade. Que o Senhor o conserve são, lúcido, alegre, generoso e forte. Continue, Lucas, afirmando que é importante o balbuciar da prece. Esta carrega a marca do Divino, fornalha que arde em nosso coração. O Espírito Santo o ilumine sempre e fortaleça a sua alma, console-o nas tribulações e aumente a sua fé na graça que transforma o homem e o mundo. Caríssimo irmão, sinta sempre a força do Alto e possa dizer como Santo Agostinho: “Sei, Senhor, que me conduzes pelas estradas do amor e da misericórdia. Tu, que penetras em minha alma e invades minha vida; a Ti, somente a Ti eu quero amar, a Ti somente a Ti desejo servir”! Obrigado Lucas pelo seu amor à Igreja e sua vida de completa doação a Cristo. Você poderá cantar como Maria Santíssima no Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas, santo é o seu nome” (Lc 1, 49). Meu afetuoso abraço e que Deus nos abençoe sempre. Amém! Catedral Metropolitana de Natal, 26 de setembro de 2025.
Padre João Medeiros Filho
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
JOÃO E IVAN
Cuidar da linguagem e comunicação
Padre João Medeiros Filho
A humanidade está cansada de guerras, violência, agressividade, tantos descompassos e injustiças sociais. É preciso cuidar da linguagem, seja verbal ou não verbal. Inegavelmente, há quem saiba cuidar bem daquilo que diz e como expressa. Infelizmente, intrigas, discórdias, inimizades e até mortes são geradas pela incapacidade ou inabilidade de se expressar, comunicar e dialogar adequadamente. Em todos os campos da vida, a linguagem adequada faz viver, enquanto a inexata pode levar à morte. Isto pressupõe saber ouvir e falar sem querer ser o centro das atenções e muito menos o senhor da palavra. É inspirada e conhecida a frase de Exupéry: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos.” Segundo alguns exegetas, a metáfora da Torre de Babel não significa meramente a diversidade de idiomas. É a falta de entendimento do que se fala. A essa situação alude também o salmista: “Eles têm boca e não falam; têm ouvidos, e não ouvem” (Sl 115/113B, 5-6). Marshall McLuhan já comentava: “Na Aldeia Global, haverá tribos com linguagens diversas.” É comum ouvir-se a queixa de desentendimento entre pais e filhos, jovens e idosos, em suma, gerações diferentes. Há verdadeiras ilhas, causadas pela linguagem humana, não apenas do ponto de vista linguístico, mas também pelo conteúdo que se pretende transmitir. Consoante a teologia cristã, o homem foi criado à imagem de Deus. Este é Trindade, comunhão e interação. De igual modo é o ser humano, perfilhado por Deus pelo mistério da graça de adoção (Rm 8, 15). Parece que a recomendação bíblica, contida no Livro dos Provérbios, foi esquecida e desprezada: “Quem tem entendimento é comedido no falar, rico em sabedoria e espírito sereno” (Pv 17, 27). É salutar e gratificante, quando se veem pessoas cultivar essa bela arte. São seres que sabem construir pontes e não criam muros que separam. Basta uma palavra mal colocada para gerar conflitos entre os indivíduos. E quando uma autoridade, seja civil ou religiosa, manifesta-se sem o uso do bom senso e a preocupação em construir uma cultura de paz, pode desencadear um estrago grande e imediato. Outrora, cantava-se nas igrejas uma bela música, de autoria da Irmã Irene Gomes: “Palavra não foi feita para dividir ninguém; é uma ponte, aonde o amor vai e vem. Palavra não foi feita para dominar, destino da palavra é dialogar; palavra não foi feita para opressão, seu destino é a união.” Ela não deve ser enunciada com uma carga de ameaça ou opressão, mas como ferramenta de sintonia e encontro. O mau uso da linguagem está se disseminando veloz e indiscriminadamente. Muitos conflitos poderiam ser resolvidos, com diálogo cordial, no qual ninguém se sinta dono da verdade, mas buscando compreender a diferença e aceitar que todos têm direito ao dom da vida. Quando alguém se vê como paladino da verdade, aniquila a possibilidade de diálogo. Isso acarreta esfriamento na relação, que pode chegar a uma convivência insuportável, infelizmente terminando com ruptura. Esse clima vem reinando de maneira mais profunda e estrutural na sociedade. Grupos se organizam e tecem sua linguagem, incapaz de ser compreendida por outros, mormente quando imbuídas de ideologias. Costumam vir envoltas de narrativas e sofismas com o propósito de bloquear o diálogo. Tal fenômeno está generalizado em todos os segmentos, inclusive nas igrejas. Verifica-se a ausência de uma linguagem empregada por todos. Quando um líder religioso se acha autorizado a dizer o que pensa e como pensa, sem levar em conta o essencial de sua missão – primordialmente consistindo em favorecer a unidade e comunhão – vai criando um clima de mal-estar, hostilidade, divisão e isolamento. As igrejas cristãs devem educar, enfatizando o uso puro da linguagem, como sacramento e ícone do encontro. A fala dos fariseus levava à incompreensão de Cristo, que sofreu muitas armadilhas de seus contemporâneos. Os cristãos necessitam ter em mente que eles são mensageiros de Cristo, o Verbo Divino. Mister se faz crescer no aprendizado benéfico da linguagem. A alegoria narrada pelos Atos dos Apóstolos, a respeito da vinda do Espírito Santo, deve ser seguida e vivida. Pentecostes é a resposta ao acontecimento da Torre de Babel. “E todos se entendiam, como se falassem sua própria língua” (At 2, 6).
domingo, 21 de setembro de 2025
Texto de MÁRCIO DE LIMA DANTAS
Jardel: o silêncio que sopra sussurros de longe
Os humanos são sozinhos. Por
mais que haja amizade, amor, companhia, a solidão é da essência. Clarice
Lispector
1. Jardel (João Pessoa,
16.12.1938-23.03.2021). Estudou em Louvain, na Bélgica. Aportou em Natal em
2001. Já em 2002, encontrou uma pessoa que foi seu grande amor até sua partida.
O casal foi residir em um condomínio bem bucólico, com casas extremamente pitorescas
(ficava à beira do rio Pium, com mata exuberante erguendo-se para fazer uma
espécie de moldura), logo quando se chega de automóvel no distrito Pium, com
seu pequeno rio que mansamente desce, estreito e plácido, com uma planta
aquática, aguapé, recobrindo partes ou seguindo dos dois lados do fio de água.
O condomínio se chamava Vila Feliz (residiram lá de dezembro de 2002 até 2004.
Era afeito à gastronomia, assim, com sua esposa, recebia os amigos, era
extremamente gentil com todos, gostava de conversar, um riso contagiante). Eis
a geografia por onde palmilhou, sempre por lugares amenos, talvez em busca de
exercitar seus silêncios intermináveis, sua introspecção, como se fosse espécie
vegetal, uma planta no jardim ou na varanda do apartamento. Era feito um pé de
bonina, que resta viçosa durante o dia, e à noite rebenta suas delicadas
flores, com odor sutil, perfume que não invade, mas permanece.
Ali, na Vila Feliz, seu refúgio
verde, Jardel plantou não só árvores mas também imagens. Cada tela parece flor
nascida desse jardim de sossegos, de remansos que nos impedem de a gente se
tatear, apalpar o espírito, pois acaba encontrando algum achaque adormecido do
corpo. Era como se ali, entre o pipilar das aves e o rumor das folhas, tivesse
encontrado aquilo que a maioria dos homens passa a vida a buscar, mas raramente
admite: o direito à paz, à brisa leve. A presença nesse lugar atenuava e
estirava os dias, tornando-os mais longos, em uma benfazeja ordem interior de
aproveitar o claro e o escuro do ciclo de um dia. Cronos, o tempo, corre
disparado, açoitando os cavalos com azorragues, em uma pressa que não faz
sentido, na medida em que não chega a lugar algum, apenas abrevia a noção do
tempo e segue deixando as mantilhas negras e o luto pelos caminhos, rodagens e
por onde existir um senciente.
O certo é que residia em uma
espécie de pátio, tudo tendo a ver com ele e sua companheira (também artista
visual). Esse condomínio, edificado pelo historiador Hélio de Oliveira em forma
de pátio retangular, era, na verdade, a reprodução de um aldeamento português
nos primórdios da colonização (séc. XVII). As casas, todas iguais, só alteravam
a cor, com seus graciosos alpendres, lugar para armar uma rede. No centro, uma
singela capela barroca, santos autênticos, uma cruz defronte, em homenagem à
Nossa Senhora do Bom Parto, por trás tem um chafariz. Para quem gosta de
história, é bom saber que essa cópia, como já dissemos, é aldeamento
missionário dos jesuítas. Outrossim, também levou em conta os cinco primeiros
aldeamentos que se tornaram as cinco primeiras cidades do Rio Grande do Norte:
Apodi, Extremoz (Guajiru), Arês, Vila Flor, São José de Mipibu. Infelizmente
pouco resta, ou nada, dessa época.
2. Enquanto tantos se rendiam ao
espírito da época — essa engrenagem que exige pressa, ruído, visibilidade,
narcisismo — Jardel recolhia-se. Sabia que não cabia nas formas do mundo veloz.
E escolheu o contrário: cultivar o silêncio como quem cultiva manjericão na
varanda. O que há de melhor do que uma paisagem tranquila, fresca, verde?
Aquele é um lugar onde se olha pela janela e se vê o vizinho passar, com um
breve cumprimento. É a vida que segue, sem pressa, sem espetáculo, sem disputas
nem pessoas tóxicas.
Naquele pequeno Éden do Rio
Grande do Norte, o tempo parecia repousar em seu regaço, entre suas pernas, com
conforto e dormindo feito gato na janela. Seu pincel era o jardineiro paciente
das horas, cuidando com delicadeza dos instantes que o mundo, ensurdecido, não
mais percebia. Sua pintura não nega esse ethos (caráter) de quem prefere
contemplar de longe, a distância, a paisagem pintada, retendo sua quietude e o
tempo inteiro buscando, com seus pincéis mais finos, reproduzir os detalhes
daquilo que a cultura ergueu, quer dizer, como se edificaram pontes, edifícios,
casarios de pessoas modestas, justapostas, encostando suas cores.
Acontece um fenômeno curioso: não
aparece a figura humana. Essa maneira de contemplar o mundo no qual se vive vem
ao encontro de querer sempre uma distância, permanecendo quase sempre
longínquo. Foi ao que me referi lá atrás, ao fato da não retratação do humano
nos seus quadros, bem como ao fato de morar na Vila Feliz, comarca na qual o
silêncio recebe o húmus para que as plantas sejam viçosas, joguem cores na
realidade, perfumem as casas, como se fosse jasmins plantados ao pé de uma
janela.
3. Vejamos, para detalhar mais um
pouco. Há uma distância habitual em seus quadros, o ponto de vista é quase
sempre o do que contempla de longe. Como se o olhar se colocasse do outro lado
do rio, do outro lado do tempo. Jardel não buscava o flagrante, mas o eco.
Observava como quem respeita um rito antigo, como se estivesse sempre à porta,
sem nunca cruzar o limite.
Esse recuo do olhar, longe de
omissão, é gesto de devoção, como quem reconhece que, para ver com verdade, é
preciso dar um passo para trás. A ausência de figuras humanas intensifica esse
efeito: cada barco ancorado, cada rua sem gente, cada construção adormecida
guarda o mistério do que passou. Eis o segredo: o artista pintava o que já não
está, e, dessa maneira, o que fez foi um registro de um tempo e de um lugar,
como se tivesse um caderno íntimo para anotar não os eventos da socialidade,
mas os distritos onde sucederam eventos da condição humana.
Os escritos e os desenhos do
caderno, transfigurados (mímesis) para as telas, remetem à posteridade de como
era a paisagem, de como viviam os homens, de como tudo é impermanente, de como
tudo passa. Tudo é impermanente, só o que é permanente é a impermanência
(aforismo budista). Assim, sua companheira, aquela que foi seu grande amor até
o fim, guarda com carinho aquilo que lhe pertenceu. De outra feita, com outro
sentido, esse guardar os resíduos ou pertences que eram dele, e que foram
manuseados pelos dois, também a torna uma arqueóloga, isolando a presença de
Afrodite (do amor), podendo mostrar a quem interessar possa como era a cidade
do Natal.
4. Curioso é notar que, fora das
telas, Jardel era figura de presença viva. Gostava de livros, de ordem e
método; tinha gosto por cozinhar, por rodearse de amigos em bares onde as
histórias fluíam. No entanto, nada disso aparece em suas pinturas. Ali, reina o
oposto: o recolhimento, a paz, a organização do mundo sem vozes. É como se, ao
pintar, ele se despisse da algaravia da vida e retornasse ao lugar onde queria
estar.
As telas de Jardel possuem um
sopro silencioso. As cores não gritam: murmuram. São compostas em gamas suaves,
frequentemente com o céu azul-acinzentado, em que o branco das nuvens parece
repousar sobre as casas. Os ocres dos muros antigos, os verdes silenciosos das
dunas, os reflexos perolados do rio Potengi, tudo é aplicado com a delicadeza
de quem acaricia a superfície com o pincel.
A luz não vem de fora, mas de
dentro das cenas. É como se as paisagens tivessem guardado a claridade da manhã
ou da véspera do entardecer. Essa luz não aparente, difusa, tem algo de milagre
doméstico, como o acender de uma vela antes da reza. Há uma paz que emana
dessas composições, como silêncio de uma casa limpa ao fim de tarde.
Na obra “vista do Areal com a
capelinha”, a pequena igreja repousa como uma oferenda. Jardel não a coloca no
centro; ela está levemente deslocada, quase tímida, mas é esse recuo que a
torna sagrada. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada
extremamente original, que contempla lá longe a paisagem plácida do estuário do
rio Potengi, parece até que a pessoa está diante da torre sineira da Igreja do
Rosário dos Pretos, mirando a cidade com reverência e recato. A rua que leva
até a capelinha é uma espécie de caminho iniciático, uma via sem alarde,
ladeada de memórias. A textura das casas em volta parece feita com pó de
lembrança.
Na tela onde se vê a Praia do
forte, e também os tanques da Petrobras, o concreto das estruturas industriais
convive com a leveza das ondas. O azul do mar, tingido por reflexos de um céu
velado, toca os tanques como se quisesse abençoá-los. Jardel, nesse caso,
harmoniza o que normalmente seria dissonante – e o faz com elegância. As linhas
retas dos tanques são como partituras, e o mar é a melodia que as percorre.
5. Na tela onde aparece o rio
Potengi, o mar, as dunas e antigas construções, o pintor atinge sua mais alta
pronúncia estética. Essa tela — pode ser eleita como sua opus Magnum — condensa
toda a sua poética visual. Nessa tela, há a presença das Moiras, as tecelãs do
destino, invisíveis, porém operantes. A urdidura da vida pulsa na margem do
rio, nas dunas dobradas como planejamento que o tempo segue dobrando, e nas
velhas casas que parecem guardar dentro de si um segredo não revelado. Como
Cloto que fia o fio, Láquesis que mede e Átropos que corta, o pincel de Jardel
se move como instrumento dessas divindades, fiando nas margens da cidade o fio
sutil do que deve permanecer. Não há morte no corte final, mas transformação em
cor, linha e memória.
É um quadro que não retrata:
consagra. A cidade aparece como um relicário de silêncio, guardando em suas
formas imóveis a pulsação do que foi. O traço é contido, a composição serena.
Não há ostentação. A técnica, acrílica sobre tela, opera como fio de tear
invisível. O que se vê é o que permanece, mesmo depois que tudo tenha mudado.
Urdir é prerrogativa de Cronos (o tempo), nunca cessa. O tempo faz e desfaz
(Fiama Hasse Pais Brandão). Os pósteros que incorporem sem escrúpulos as
transformações, outros lamentem o que foi desfeito e era pura beleza, como
belíssimas fachadas da Ribeira. A medida desse sentimento de valorizar o que
outrora foi erguido e ainda reverbera na cidade Alta – como a Igreja do Rosário
dos Pretos ou a Igreja de Santo Antônio – podemos mensurar através de um olhar
que procura reter as coisas belas do passado. As telas são plenas de ângulos
inusitados. Há uma mirada extremamente original que contempla, lá longe, a
paisagem plácida do estuário do rio Potengi. Parece que as pessoas estavam na
frente da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos.
6. Jardel não buscava o
extraordinário. Seu tema era o ordinário que, por força do olhar,
transfigura-se. Como os antigos monges que copiavam manuscritos à mão, ele
pintava com vagar, sabendo que cada cor carregava uma partitura de emoção. Suas
telas são como pequenas orações visuais. Se a arte do Rio Grande do Norte,
muitas vezes, escora-se nos mitos religiosos, Jardel escolheu o outro caminho:
o da contemplação. Sua fé é no que permanece. No muro antigo. Na rua deserta.
No barco silencioso. Pintava como quem se despede com ternura. Por isso, tudo
permanece.
Talvez ele tenha, de fato,
pintado um jardim, no qual pedira licença aos homens para se retiraram, pois
dissera de antemão que precisava de remanso. Esse jardim, feito de telas,
cores, continuou florescendo mesmo após a partida do seu jardineiro. Isso mesmo,
haverá uma mulher que guardará um resto do luto não totalmente comprido, uma
cicatriz na qual alterna a intensidade da dor (varia de dia para dia). Porém,
está tudo pago (Edith Piaf), nenhum dos dois deve nada a ninguém, nem entre si,
pois o verdadeiro amor consegue urdir tacitamente essa ventura de compreender
os defeitos de um e de outro, para que se erga um monólito de puro granito,
quedado em homenagem a um puro amor, no qual a quietude e o sossego desfizeram
as fronteiras de qualquer tipo, fundindo-se no distrito da compaixão e da
beleza de quem conheceu a felicidade.
Jardel: o silêncio que sopra sussurros de longe
Os humanos são sozinhos. Por mais que haja amizade, amor, companhia, a solidão é da essência. Clarice Lispector
1. Jardel (João Pessoa, 16.12.1938-23.03.2021). Estudou em Louvain, na Bélgica. Aportou em Natal em 2001. Já em 2002, encontrou uma pessoa que foi seu grande amor até sua partida. O casal foi residir em um condomínio bem bucólico, com casas extremamente pitorescas (ficava à beira do rio Pium, com mata exuberante erguendo-se para fazer uma espécie de moldura), logo quando se chega de automóvel no distrito Pium, com seu pequeno rio que mansamente desce, estreito e plácido, com uma planta aquática, aguapé, recobrindo partes ou seguindo dos dois lados do fio de água. O condomínio se chamava Vila Feliz (residiram lá de dezembro de 2002 até 2004. Era afeito à gastronomia, assim, com sua esposa, recebia os amigos, era extremamente gentil com todos, gostava de conversar, um riso contagiante). Eis a geografia por onde palmilhou, sempre por lugares amenos, talvez em busca de exercitar seus silêncios intermináveis, sua introspecção, como se fosse espécie vegetal, uma planta no jardim ou na varanda do apartamento. Era feito um pé de bonina, que resta viçosa durante o dia, e à noite rebenta suas delicadas flores, com odor sutil, perfume que não invade, mas permanece. Ali, na Vila Feliz, seu refúgio verde, Jardel plantou não só árvores mas também imagens. Cada tela parece flor nascida desse jardim de sossegos, de remansos que nos impedem de a gente se tatear, apalpar o espírito, pois acaba encontrando algum achaque adormecido do corpo. Era como se ali, entre o pipilar das aves e o rumor das folhas, tivesse encontrado aquilo que a maioria dos homens passa a vida a buscar, mas raramente admite: o direito à paz, à brisa leve. A presença nesse lugar atenuava e estirava os dias, tornando-os mais longos, em uma benfazeja ordem interior de aproveitar o claro e o escuro do ciclo de um dia. Cronos, o tempo, corre disparado, açoitando os cavalos com azorragues, em uma pressa que não faz sentido, na medida em que não chega a lugar algum, apenas abrevia a noção do tempo e segue deixando as mantilhas negras e o luto pelos caminhos, rodagens e por onde existir um senciente. O certo é que residia em uma espécie de pátio, tudo tendo a ver com ele e sua companheira (também artista visual). Esse condomínio, edificado pelo historiador Hélio de Oliveira em forma de pátio retangular, era, na verdade, a reprodução de um aldeamento português nos primórdios da colonização (séc. XVII). As casas, todas iguais, só alteravam a cor, com seus graciosos alpendres, lugar para armar uma rede. No centro, uma singela capela barroca, santos autênticos, uma cruz defronte, em homenagem à Nossa Senhora do Bom Parto, por trás tem um chafariz. Para quem gosta de história, é bom saber que essa cópia, como já dissemos, é aldeamento missionário dos jesuítas. Outrossim, também levou em conta os cinco primeiros aldeamentos que se tornaram as cinco primeiras cidades do Rio Grande do Norte: Apodi, Extremoz (Guajiru), Arês, Vila Flor, São José de Mipibu. Infelizmente pouco resta, ou nada, dessa época. 2. Enquanto tantos se rendiam ao espírito da época — essa engrenagem que exige pressa, ruído, visibilidade, narcisismo — Jardel recolhia-se. Sabia que não cabia nas formas do mundo veloz. E escolheu o contrário: cultivar o silêncio como quem cultiva manjericão na varanda. O que há de melhor do que uma paisagem tranquila, fresca, verde? Aquele é um lugar onde se olha pela janela e se vê o vizinho passar, com um breve cumprimento. É a vida que segue, sem pressa, sem espetáculo, sem disputas nem pessoas tóxicas. Naquele pequeno Éden do Rio Grande do Norte, o tempo parecia repousar em seu regaço, entre suas pernas, com conforto e dormindo feito gato na janela. Seu pincel era o jardineiro paciente das horas, cuidando com delicadeza dos instantes que o mundo, ensurdecido, não mais percebia. Sua pintura não nega esse ethos (caráter) de quem prefere contemplar de longe, a distância, a paisagem pintada, retendo sua quietude e o tempo inteiro buscando, com seus pincéis mais finos, reproduzir os detalhes daquilo que a cultura ergueu, quer dizer, como se edificaram pontes, edifícios, casarios de pessoas modestas, justapostas, encostando suas cores. Acontece um fenômeno curioso: não aparece a figura humana. Essa maneira de contemplar o mundo no qual se vive vem ao encontro de querer sempre uma distância, permanecendo quase sempre longínquo. Foi ao que me referi lá atrás, ao fato da não retratação do humano nos seus quadros, bem como ao fato de morar na Vila Feliz, comarca na qual o silêncio recebe o húmus para que as plantas sejam viçosas, joguem cores na realidade, perfumem as casas, como se fosse jasmins plantados ao pé de uma janela. 3. Vejamos, para detalhar mais um pouco. Há uma distância habitual em seus quadros, o ponto de vista é quase sempre o do que contempla de longe. Como se o olhar se colocasse do outro lado do rio, do outro lado do tempo. Jardel não buscava o flagrante, mas o eco. Observava como quem respeita um rito antigo, como se estivesse sempre à porta, sem nunca cruzar o limite. Esse recuo do olhar, longe de omissão, é gesto de devoção, como quem reconhece que, para ver com verdade, é preciso dar um passo para trás. A ausência de figuras humanas intensifica esse efeito: cada barco ancorado, cada rua sem gente, cada construção adormecida guarda o mistério do que passou. Eis o segredo: o artista pintava o que já não está, e, dessa maneira, o que fez foi um registro de um tempo e de um lugar, como se tivesse um caderno íntimo para anotar não os eventos da socialidade, mas os distritos onde sucederam eventos da condição humana. Os escritos e os desenhos do caderno, transfigurados (mímesis) para as telas, remetem à posteridade de como era a paisagem, de como viviam os homens, de como tudo é impermanente, de como tudo passa. Tudo é impermanente, só o que é permanente é a impermanência (aforismo budista). Assim, sua companheira, aquela que foi seu grande amor até o fim, guarda com carinho aquilo que lhe pertenceu. De outra feita, com outro sentido, esse guardar os resíduos ou pertences que eram dele, e que foram manuseados pelos dois, também a torna uma arqueóloga, isolando a presença de Afrodite (do amor), podendo mostrar a quem interessar possa como era a cidade do Natal. 4. Curioso é notar que, fora das telas, Jardel era figura de presença viva. Gostava de livros, de ordem e método; tinha gosto por cozinhar, por rodearse de amigos em bares onde as histórias fluíam. No entanto, nada disso aparece em suas pinturas. Ali, reina o oposto: o recolhimento, a paz, a organização do mundo sem vozes. É como se, ao pintar, ele se despisse da algaravia da vida e retornasse ao lugar onde queria estar. As telas de Jardel possuem um sopro silencioso. As cores não gritam: murmuram. São compostas em gamas suaves, frequentemente com o céu azul-acinzentado, em que o branco das nuvens parece repousar sobre as casas. Os ocres dos muros antigos, os verdes silenciosos das dunas, os reflexos perolados do rio Potengi, tudo é aplicado com a delicadeza de quem acaricia a superfície com o pincel. A luz não vem de fora, mas de dentro das cenas. É como se as paisagens tivessem guardado a claridade da manhã ou da véspera do entardecer. Essa luz não aparente, difusa, tem algo de milagre doméstico, como o acender de uma vela antes da reza. Há uma paz que emana dessas composições, como silêncio de uma casa limpa ao fim de tarde. Na obra “vista do Areal com a capelinha”, a pequena igreja repousa como uma oferenda. Jardel não a coloca no centro; ela está levemente deslocada, quase tímida, mas é esse recuo que a torna sagrada. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original, que contempla lá longe a paisagem plácida do estuário do rio Potengi, parece até que a pessoa está diante da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos, mirando a cidade com reverência e recato. A rua que leva até a capelinha é uma espécie de caminho iniciático, uma via sem alarde, ladeada de memórias. A textura das casas em volta parece feita com pó de lembrança. Na tela onde se vê a Praia do forte, e também os tanques da Petrobras, o concreto das estruturas industriais convive com a leveza das ondas. O azul do mar, tingido por reflexos de um céu velado, toca os tanques como se quisesse abençoá-los. Jardel, nesse caso, harmoniza o que normalmente seria dissonante – e o faz com elegância. As linhas retas dos tanques são como partituras, e o mar é a melodia que as percorre. 5. Na tela onde aparece o rio Potengi, o mar, as dunas e antigas construções, o pintor atinge sua mais alta pronúncia estética. Essa tela — pode ser eleita como sua opus Magnum — condensa toda a sua poética visual. Nessa tela, há a presença das Moiras, as tecelãs do destino, invisíveis, porém operantes. A urdidura da vida pulsa na margem do rio, nas dunas dobradas como planejamento que o tempo segue dobrando, e nas velhas casas que parecem guardar dentro de si um segredo não revelado. Como Cloto que fia o fio, Láquesis que mede e Átropos que corta, o pincel de Jardel se move como instrumento dessas divindades, fiando nas margens da cidade o fio sutil do que deve permanecer. Não há morte no corte final, mas transformação em cor, linha e memória. É um quadro que não retrata: consagra. A cidade aparece como um relicário de silêncio, guardando em suas formas imóveis a pulsação do que foi. O traço é contido, a composição serena. Não há ostentação. A técnica, acrílica sobre tela, opera como fio de tear invisível. O que se vê é o que permanece, mesmo depois que tudo tenha mudado. Urdir é prerrogativa de Cronos (o tempo), nunca cessa. O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). Os pósteros que incorporem sem escrúpulos as transformações, outros lamentem o que foi desfeito e era pura beleza, como belíssimas fachadas da Ribeira. A medida desse sentimento de valorizar o que outrora foi erguido e ainda reverbera na cidade Alta – como a Igreja do Rosário dos Pretos ou a Igreja de Santo Antônio – podemos mensurar através de um olhar que procura reter as coisas belas do passado. As telas são plenas de ângulos inusitados. Há uma mirada extremamente original que contempla, lá longe, a paisagem plácida do estuário do rio Potengi. Parece que as pessoas estavam na frente da torre sineira da Igreja do Rosário dos Pretos. 6. Jardel não buscava o extraordinário. Seu tema era o ordinário que, por força do olhar, transfigura-se. Como os antigos monges que copiavam manuscritos à mão, ele pintava com vagar, sabendo que cada cor carregava uma partitura de emoção. Suas telas são como pequenas orações visuais. Se a arte do Rio Grande do Norte, muitas vezes, escora-se nos mitos religiosos, Jardel escolheu o outro caminho: o da contemplação. Sua fé é no que permanece. No muro antigo. Na rua deserta. No barco silencioso. Pintava como quem se despede com ternura. Por isso, tudo permanece. Talvez ele tenha, de fato, pintado um jardim, no qual pedira licença aos homens para se retiraram, pois dissera de antemão que precisava de remanso. Esse jardim, feito de telas, cores, continuou florescendo mesmo após a partida do seu jardineiro. Isso mesmo, haverá uma mulher que guardará um resto do luto não totalmente comprido, uma cicatriz na qual alterna a intensidade da dor (varia de dia para dia). Porém, está tudo pago (Edith Piaf), nenhum dos dois deve nada a ninguém, nem entre si, pois o verdadeiro amor consegue urdir tacitamente essa ventura de compreender os defeitos de um e de outro, para que se erga um monólito de puro granito, quedado em homenagem a um puro amor, no qual a quietude e o sossego desfizeram as fronteiras de qualquer tipo, fundindo-se no distrito da compaixão e da beleza de quem conheceu a felicidade.
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
Texto do Professor MÁRCIO
DE LIMA DANTAS
Goreth Caldas: um sistema de metáforas (das tantas
esperas)
Entre os
escaravelhos e o arbusto
do peito frágil existem
segredos buscando alívio
através de sussurros.
Henriqueta Lisboa
1.
Goreth Caldas (Caicó, 1958), embora detenha um parentesco muito próximo do nosso maior pintor de todos os tempos, não reteve maiores influências daquele que a incentivou no início da carreira de artista visual. Mesmo sendo autodidata, apesar de ter recebido a influência e o necessário apoio de seu primo Dorian Gray para realizar suas exposições individuais e fortalecer seu espírito de convencimento de que era uma pintora que nascia e buscaria seu lugar no universo das artes do Rio Grande do Norte.
Quero dizer com isso que seu desenho expressa um exímio
domínio em elaborar os contornos e sugerir a perspectiva por meio do uso
preciso das pinceladas, mormente nas marinas ou paisagens cuja temática é uma
nesga de mar. Com efeito, o pincel obedece docemente às oscilações de ascender
ou descer, como sucede nos morros que barram as águas ou dividem as praias.
Tendo iniciado usando tinta acrílica sobre tela, também usou
tinta óleo, bem como construiu várias séries com xilogravura. Fez vasto uso de
pintar casarios erguidos como palafitas, mas aprimorou, e muito, as marinas e
os buquês de flores.
A obra multifacetada de Goreth Caldas, constituída por um arco que vai do figurativo ao abstrato, passando pela xilogravura, como já dissemos, permite-nos circunscrever uma espécie de sistema que tem o epicentro na simbólica da metáfora. Em razão de possuir esse símbolo que irradia por toda obra, nos deixa entrever que o semblante do que se encontra ao largo ou quieto em seu silêncio, permite também que cada um espectador lance sua interpretação. A metáfora não é isso: uma coisa no lugar da outra? Inerente aos códigos inventados pelos humanos, quer seja por meio da linguagem escrita, quer diga respeito ao pictórico.
Ademais, as metáforas são formas, digamos assim, bastante
simples de comunicação e que podem ser analógicas ou digitais; o que importa é
a capacidade de justapor dois elementos diferentes com o intuito de se fazer
compreender ou, quando levada para o universo das artes, gerar beleza,
contraste de cores, texturas, reorganização do espaço no qual habita o homem e
seus semelhantes.
É bom lembrar dessa insistência em paisagens marinhas e
casarios modestos, sem a figura humana, que somente em algumas séries é que
despontam com vigor. De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que
livremente nominamos sistema. Aliás, podemos, para efeito didático, nos
permitir essa organização, na medida em que um elemento presente nos quadros
vale por relação, o que nos círculos concêntricos de imagens (barcos ancorados,
xilogravuras, buquês de flores, casario, marinas) lança seus vetores sempre
para o mesmo lugar: uma espécie de metáfora.
Sim, há de lembrar o existir de relações precisas entre
todos os paradigmas presentes, perfazendo uma organização na qual cada obra
contém resquícios ou nacos das outras, engendrando uma pronúncia estética cujo
valor é o reconhecimento do trabalho edificando uma dicção eivada de
originalidade ou releitura de um estilo histórico presente na História das
Artes.
É bom lembrar que nem todo artista detém essa singularidade revestida de um fulgor que inscreve sua assinatura no conjunto dos seus pares, triunfando a beleza solene de quem é capaz de extrair, por meio de parcas cores ou diminutas linhas, alguns elementos que nos cercam e nos fazem ser e sentir, identificando nossa humanidade.
Contudo, faz-se necessário lembrar de artistas que são dotados de mil e uma maneiras de expressar, conduzindo ao espectador uma coleção de semblantes incomuns e diferentes do que fora há dois ou três anos.
3.
Essa simbólica do ermo, do abandono, da solitude, encontra-se até mesmo no casario e nas palafitas, onde o humano não é presença, outorgando ao que contempla a mesma sempre pergunta: onde estão as pessoas, os idosos, as crianças e as mulheres ocupadas na azáfama da casa? É bom lembrar dessa insistência que acaba por moldurar uma mitologia na qual os lugares dos humanos estão desertos. Para onde foram banidas as criaturas, o que é vivo, como os animais e as pessoas?
Uma vez que ao chegar com o olhar a tais lugares, não há outra atitude a fazer senão apalpar seu próprio espírito, resguardador da psique, cumprindo-se o papel da arte na existência dos que errantes estão tentando debelar Cronos (tempo), o devorador de seus filhos, caminhando por todo tipo de rodagem, pelas zonas rurais ou pelas cidades. De certa maneira, nas paisagens e marinas de Goreth Caldas, apenas existe lugar para o inexistente, ou seja, para o abstrato dos mitos.
É bom lembrar o que disse Fernando Pessoa em um poema do livro Mensagem: “O mito é o nada que é tudo”. O poeta português trata de coisas abstratas, organizações mentais, personagens cultivados em nossas mentes, habitantes que vivem nas herdades do que Jung indigitou de arquétipos, e que dizem respeito a todos os humanos, ativando seus maquinismos consoante nossas necessidades para explicar ou delinear com linhas de grossa qualidade aquilo que somos ou que temos, mas não controlamos.
De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que nominamos aqui como sistema, uma vez que são elementos a remeter uns aos outros, perfazendo uma organização na qual um trabalho na tela remete a outro, engendrando uma pronúncia estética cujo valor é reconhecimento da obra terminada através de uma eventual dicção.
4.
O que de tíbia risca os limites da tela não anula o desenho
pretendido, ao se contemplar com mais demora e atenção, aos que miram os
detalhes com cuidado do que não parece ser um quadro. Apenas podemos afirmar o
quanto atípico é, sem deixar de ser o incomum que também habita nossos
distritos internos e que muitas vezes só o objeto de arte vem trazer à tona e
nos deixar mais anchos na quietude de compreender a arte como fármaco, doador
dos dons, conselhos de caminhos que devemos seguir. Enfim, a arte é uma espécie
de sanativo, – sobretudo para quem tem a necessidade de plasmar por meio de
diversos procedimentos – busca concretizar o que era germe ou semente, como se
fosse uma cepa a se preencher de galhos que logo em seguida se tornarão em
flores.
Eis que temos apenas riscos entrecruzados, a cumprir o papel de expressar na tela o que busca dizer de uma situação de pertencimento aos lugares quedados no nosso imo, emergindo quando de uma necessidade ou procura ansiosa de uma resposta ou mesmo uma compreensão do que chafurda nos prados de nosso íntimo.
O poeta conseguiu no livro Mensagem, em um dos seus mais belos poemas, dispor de forma ordenada a serventia do mito. Fomos acostumados a compreender a realidade como o lugar para onde o mito repousa seu universo de significantes. Ou seja, é bem diferente o que parece suceder, a realidade deve mais ao mito do que possamos imaginar. Assim a lenda se escorre / A entrar na realidade, falo de algumas séries cujo desenho almeja sua tentativa através de uma franzina de riscos em muitas cores.
E tudo o que é intangível vigora na obra de Goreth Caldas, contudo, conseguimos saber que existem na nossa psiqué (mente) e no nosso soma (corpo), chegando entre muitas formar, dentre elas as enfermidades que nos afligem, atribulam e quebrantam a nossa totalidade de existente. Ora, cada um faz uso do que crer, como a religião, com suas diversos maneiras de contemplar e ter fé. Isso vai de cada um. A medicina também reserva um papel de suma importância no conhecimento dos meandros do corpo. Quase ia esquecendo, esse também é o chão rejuntado onde Hypnos (Sono) e Morpheu (Sonho) aguardam o fechar dos nossos olhos, de cansaço ou porque é noite mesmo, necessário se faz o descanso.
5.
Por fim, essas telas tão-somente se comprazem em apresentar estruturas compostas por meio de pinceladas um tanto rápidas, renegando a presença humana. Essa hiância nos remete a evocar questões filosóficas como esta: qual o motivo de não haver gente, haja vista que não se trata de abstracionismo geométrico ou expressionista. Pontuamos aqui as marinas do seu primo Dorian Gray, cujas paisagens hesitam entre o abstrato e o figurativo.
Vale lembrar que talvez as marinas sejam a obra-prima do nosso pintor. Tudo se restringe às propriedades do figurativo, mesmo que esteja esmaecido, sugerido ou riscos verticais, fazendo-nos refletir que se trata de algo que parece algo desde sempre integrante da cultura.
Com certeza, e com o tempo passado, mais de um século, podemos não ter dúvidas de que a partir do Impressionismo, a figura humana foi como que desbotando das telas, em um fenômeno que só mesmo a noção de Espírito da época pode dar conta e nos conduzir a uma compreensão de como uma mesma forma de pintar, – independe dos homens e lugares terem qualquer tipo de relação, – procederem da mesma forma, ou seja, a figura humana de natureza realista desvanece-se.
Antes de mais nada, não podemos simplesmente isolar esse fenômeno e afirmar que um estilo era “da hora”, pois quando se trata da arte, sobrepõem-se o passado e o presente, fazendo com que toda uma diversidade de formas de expressão tenha o seu lugar, desde que apresente qualidade. O início do século XX, com suas vanguardas, rompendo com o passado, é um bom exemplo de como toda uma diversidade de estilos conviveu lançando fronteiras na qual havia hachuras ou total independência.
Chegamos onde gostaríamos de relacionar o trabalho de Goreth Caldas e sua relação com o Abstracionismo, não importando se é o geométrico ou o expressionista, o que vale é o manuseio das cores e texturas, conduzindo a plasmar desenhos hesitantes entre o figurativo ou o abstrato, mesmo que alguns fujam à categorização. Em arte, é quase impossível proceder a determinados enquadramentos pois é da sua natureza haver os estilos ou pintores que funcionam como referência.
6.
Antes de mais nada, para finalizar, só nos resta outorgar um referendo à beleza e à originalidade da obra multifacetada dessa eminente pintora, Goreth Caldas, destacando-se na vasta lavoura de nossas artes visuais, em uma comarca plena de características agradáveis ao se perceber, ao se contemplar, ao se compreender, nunca esquecendo de um lirismo bem diferente daquele a que estamos acostumados a lidar ou ir nos vernissages da vida.
Ia esquecendo de falar dos seus opulentos buquês de flores em vasos. Essas naturezas-mortas são compostas não de arranjos com diversas espécies de flores, como sempre sucede, mas são monogâmicos, ou seja, um punhado de fores dentro de jarro, ocupando todo o espaço das telas, em uma beleza que excede, por conta da maneira como estão justapostas.
Até parece uma busca na qual, ao fim e ao cabo, mana o que talvez a pintora nem venha a ter consciência, como já dissemos: o desacompanhamento de quadros com paisagens ermas, nos quais a solidão arrodeia seu total domínio. Solidão no sentido de que a figura humana não aparece ou está presente. Comprazendo-se em apresentar estruturas compostas através de pinceladas, muitas vezes é como se se contentasse apenas em expressar os mastros que sustentam as velas. Em alguns casos, ficam explícitos, os barcos ancorados, com riscos que delineiam uma embarcação.
Contemporaneamente, a condição do indivíduo solitário vem a ser matéria complexa, passando do plano individual, singular, para o coletivo, sendo já uma preocupação do Estado. Só para se ter uma ideia, alguns países criaram o Ministério da Solidão, tais como o Reino Unido e o Japão. Consabido é os desdobramentos da solidão, como enfermidade, lançando os indivíduos o tempo inteiro a se apalpar, buscando toda uma sintomatologia que quase sempre não é resultado de uma doença ou espécie de vício, mas deságua em transtornos afetivos, em síndromes do pânico.
Com certeza, agora sim, surgem doenças como a depressão, o
Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e outras mais relacionadas à psiqué,
nem sempre fácil de debelar ou conviver com um estado que o indivíduo não
deseja, mas que pode resultar em coisas mais trágicas, como a autossabotagem e
o suicídio.
terça-feira, 16 de setembro de 2025
Um país gravemente enfermo
Padre João Medeiros Filho
O Brasil contamina-se cotidianamente com polêmicas, intransigências, radicalismos e interesses meramente ideológicos ou partidários. Acarreta desgaste e desperdício de energias para os cidadãos e a sociedade. Por preconceito político ou partidário desprezam-se oportunidades ricas de diálogos construtivos, capazes de contribuir para a solução de muitos problemas. A dificuldade ou incapacidade de debater construtivamente tem revelado um despreparo para o exercício de responsabilidades civis, profissionais e até religiosas. Isso não é novo. Na época de Cristo, seus concidadãos viviam política e psicologicamente armados. A animosidade entre os habitantes da Judeia e Samaria, as diatribes entre fariseus, hipócritas, saduceus e outras seitas não são muito diferentes dos atuais embates no Brasil. Os quatro evangelhos estão repletos de alusões e exemplos desses confrontos (cf. Lc 9, 52-53; Jo 4, 9). Pode-se verificar um significativo descompasso entre as inúmeras possibilidades culturais, científicas, tecnológicas do Brasil contemporâneo e as contradições sócio-políticas do país. Este debilita-se paulatinamente com lutas fratricidas, causando impacto sobre diferentes atividades. Disso resulta uma fragilidade crescente das instituições, cada vez mais desacreditadas e desrespeitadas. Na carência de equilíbrio jurídico, ético e político, falta clareza às pessoas. Desse modo, prevalecem os conchavos, as narrativas e conveniências que produzem descompassos e dificultam entendimentos. Nesse contexto, a capacidade de diálogo se enfraquece, comprometendo a percepção da verdade e o exercício da solidariedade. Entendimento, acordo ou consenso parecem banidos neste país. O outro passa a ser inimigo, e não apenas umdissidente. É umretorno ao pensamento de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros.” Atualmente, a pátria e os cidadãos se retroalimentam patologicamente de polêmicas e antagonismos. Não se informa mais com objetividade e razoabilidade. Joga-se querosene na fogueira. Hoje, as pessoas – inclusive governantes – tornam-se incapazes de aceitar, sequer ouvir críticas que ajudam a construir dinâmicas renovadoras dos diferentes contextos sociais. “Foi-se o contraditório, reina o ditatório”, já desabafava o jurista e senador Afonso Arinos, na década de 1970. Carentes de humildade, tangidos pela arrogância e empáfia, muitos se julgam melhores e “iluminados” do que são realmente. Hoje, a tendência é condenar açodadamente. Há pressa na emissão de juízos. Desconsideram-se as ponderações necessárias para interpretar adequadamente falas e fatos. Não se analisa o porquê das coisas. As sentenças são imediatas, impulsionadas por ódio, preconceito ou interesses mesquinhos. Por isso, opiniões e pareceres distanciam-se da realidade, prejudicando inúmeros processos importantes. São sintomas de obscurantismo e radicalismo. Portanto, as instituições não amadurecem. E, consequentemente, os acontecimentos são banalizados na velocidade própria das redes sociais, sem análise séria dos conteúdos e seus alcances. Valoriza-se mais o frenesi abusivo e alienante, ameaçando o equilíbrio mental e emocional do indivíduo e da pátria. Dentre as consequências desse cenário estão a ausência de habilidade para se relacionar e a crescente violência. O lar está deixando de ser o espaço das dinâmicas dialogais para se tornar palco de conflitos. “Muitos lares não passam de meros pensionatos”, afirmava Dom Nivaldo Monte. Isso contribui para o adoecimento da nação, agravado recentemente pela inépcia e falta de criatividade de certos administradores e o consequente colapso social. É preciso vencer as enfermidades morais e políticas que podem levar à depressão e derrocada social A desorientação generalizada é sinal de que o tecido interior da nação está roto. A dinâmica da fé é um pilar relevante para a existência. Jesus Cristo tranquilizou o leproso: “Levanta-te e vai. Tua fé te salvou” (Lc 17, 19). A recuperação da interioridade exige solidez da dimensão espiritual. Diante da crescente morbidade do ser humano, é prioritário buscar o fortalecimento da espiritualidade. A religiosidade integra também a terapêutica que restabelece a verdadeira dimensão humana. Ela contribui para que o sentido da vida seja percebido. As igrejas e religiões precisam oferecer abundantemente dinâmicas e vivências que venham a ajudar o Brasil a recompor sua interioridade. Atitudes renovadoras que possam contribuir para superar situações depauperantes, indiferenças comprometedoras da paz, disputas cegas e fraticidas. Como são profundas e reconfortantes as palavras de Jesus Cristo à samaritana! “Ah, se tu conhecesses o dom de Deus...” (Jo 4, 10).
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Texto do Prof. Márcio de Lima Dantas
Carlos Gomes: um naïf registra e exulta uma pintura lúdica
O homem benigno faz bem à sua própria alma, mas o cruel perturba a sua própria carne. Provérbios, 11, 17 1. Carlos Gomes (Natal, 10.09.1939) é professor aposentado do curso de Direito da UFRN, sendo professor emérito. Após a perda da esposa, para se evadir da saudade e da solidão, bem como de um trabalho de luto comprido demais, que se instalara no seu espírito, começa a pintar. Consabido é que o tempo do nojo ou do luto tem uma expectativa de duração, não há consenso, mas quando passa mais de um tempo de se erguer e opta por prosseguir pela vida, sujeita a outras atribulações, instala-se uma quietude interior, porém domada pelos barbantes da razão, pela sabedoria, pela conversa com outros que passaram pela mesma situação, assim como perdoar a pessoa querida que se foi, mas também se perdoar com relação a ela (foi melhor assim? estava sofrendo em demasia? O lídimo amor libera o enfermo para que descanse na eternidade).
Creio que foi esse fenômeno que o fez se interessar pela pintura. É perceptível um elemento narrativo nas telas, fazendo parte do que houvera como cotidiano ou buscando, nos ícones da Igreja Católica, guarida para uma alma apunhalada pela vida, chegando sem nenhum aguardo. A vida é traiçoeira. Tânatos, a morte, parece insaciável na sua ânsia de ceifar a seara humana. A morte é autossuficiente, não precisa de trabalhadores para a sega do humano, fazendo valer seu baralho de quem é o próximo a partir para onde não sabemos onde (provavelmente para lugar nenhum, pois ergue sua morada nos corações de quem amava a pessoa que se foi). Carlos Gomes chegou a lançar um livro sobre sua experiência de vida: Eu, pintor? Durante o lançamento do livro, houve uma grande exposição individual no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
Seu estilo caracteriza-se como naïf ou ingênuo. Sucede que ocorre uma diferença entre ele e seus pares de tradição. Completamente autodidata, seu desenho se inscreve primitivo, no sentido da não preocupação com o desenho acadêmico ou com o que combina ou não na paleta de cores. É uma pintura liberta dos paradigmas perpetrados pela tradição.
2. Remete mesmo à escola a que se filia, a naïf. Esse estilo de pintura sempre seguiu em paralelo às chamadas Belas Artes, caracterizando-se por refratar os paradigmas dos estilos históricos chantados pelo Renascimento. Consolidou-se somente no início do século XX, com a aceitação de Henry Rousseau, revelando-se a admiração por sua obra, carimbada de legitimidade por pintores das vanguardas, sendo estes considerados dignos de participar dos salões que eram muito comuns na época. Podemos arrolar um dos grandes pintores desses tempos: Gauguin foi um dos primeiros a reconhecer Henry Rosseau como legítimo, em nada diferente dos demais, com seus títulos da plêiade das Belas Artes. Ele é o mito fundante que fez reconhecer o naÏf e tornar esse estilo com o mesmo status dos conhecidos na época.
Por exercer uma pintura que não manuseava os cânones da tradição, com vários estilos históricos, — consoante o Ar do tempo —, até as vanguardas, houve recusa do público e da crítica. Causou estranheza misturar esse artista com os dos salões, que estava mais para o primitivo (Faço saber que todo bom livro de História da Arte registra o papel de Henry Rousseau e sua incorporação no seio das artes como compreendemos hoje. O naïf tem seu lugar e seu valor).
Talvez a principal caraterística da obra de Carlos Gomes seja um elemento que faz reconhecer uma tela como naïf: a ausência de perspectiva. Existe tão somente comprimento e largura. Quase todos seguem essa regra geral.
Com efeito, em Carlos Gomes, é possível contemplar uma espécie de “grau zero da perspectiva”. Mesmo os naïfs mais “raiz”, digamos assim, resguardam algum resquício de profundidade, que se soma ao comprimento e à largura. Vou dizer o que se segue apenas para efeito didático: talvez, como cânone obrigatório demandado pela religião, a representação nos túmulos dos egípcios, pintando as classes dominantes, o cotidiano e as guerras, não apresentava a perspectiva de jeito qualidade, mesmo por que a geometria, como reconhecemos hoje, ainda não tinha aparecido nos desenhos das artes até o Renascimento (apareceu nos primórdios do século XV, fruto de pesquisas de alguns pintores e matemáticos).
3. Uma grande parte do que produziu caracteriza-se como arte sacra, haja vista a quantidade de retratos de santos ou mesmo de igrejas, ressaltando a beleza da arquitetura, tais como: Matriz de N. Sra. de Santana, Igreja de N. Sra. do Rosário e Matriz de Pau dos Ferros. Com relação à retratação de santos, podemos observar: N. Sra. das Graças, N. Sra. do Líbano, São Pedro, São João, Petrus (Pedro pescador), São João com um cordeiro, três telas retratando São Francisco. Há outra retratando dois jesuítas, ambos estão serenos, sem a pérfida malícia inerente a alguns humanos. Há uma aura de quietude interior; parece que buscam apresentar-se e não converter alguém. A simplicidade dos dois exulta uma ingenuidade sem afetações nem artifícios, buscando cambiar com os semelhantes a beleza da vida e seus momentos nos quais a alma apascentada queda-se em um torpor de ausência de atribulações interiores contra si mesma (isso é mais comum do que se pensa: a autossabotagem).
A maneira como retratou esses diversos santos recusa o hieratismo na figuração dos santos e seus respectivos atributos. Pelo contrário, há uma contemplação plácida no olhar e na posição em que se encontra. É suficiente comprovar essa assertiva nos olhos e no vinco gracioso da boca. Podemos observar os retratos de São Francisco para perceber esse semblante genuíno, que a nada nem a ninguém ameaça, apenas se compraz, apenas parece buscar como funciona a essência que o cerca.
Como podemos constatar, ele retrata uma Igreja Católica não dotada de punição, nem de tornar a noção de pecado como um dos principais dogmas, talvez seja o que mais busca enfatizar entre os ritos e obrigações, opondo-se a um Deus implacável, que busca e vigia o seu rebanho. Há todo um cabedal de intercorrências a receber o devido castigo, a punição e a paga por não ter se comportado de determinada maneira na enciclopédia dos pecados. Curioso que isso não vale para a classes dominantes. Considerando tudo o que há de gente, na verdade, isso não passa de Ideologia, quer dizer, a etiqueta social com seus maneirismos e afetações presentes no comportamento das classes dominantes.
A Ideologia faz crer que o ser e o estar dos dominantes, a maneira como propalam seus valores e supostamente se comportam, em um manual abstrato, apenas deixa implícito como deve ser e, caso se rompa, segue a punição. Bem claro que é um monte de filigranas, ou seja, o que foi historicamente construído faz crer que isso tudo é natural. O problema é que a maioria da população acredita nessa falácia. Contudo, um país cheio de escândalos traz uma Brasília com fôlego enorme para toda uma sorte de pilhagem ao patrimônio público. Há também, como última moda, o baticum dos neopentecostais, migrados da Igreja Católica e fazendo uma espécie de ensaio de escola de samba. Quem viver verá (sempre pode ser ainda pior).
4. Com relação a Jesus Cristo, pontuou algumas das estações da Via Dolorosa bem como eventos da sua vida: Assunção; Ressurreição; Retirado da cruz, nos braços de sua mãe, Maria; Nascimento em Belém com os três Reis Magos; também retratou a trindade no céu (Jesus, Pomba do Espírito Santo, Deus e Maria ajoelhada embaixo).
Tudo o que vem a ser sacro na pintura de Carlos Gosmes há de se pensar muito mais em desenhos e pinturas, cores, nomes, evocação de um mito com mais de dois mil anos. Trata-se de arte, nunca de religiosidade, assim como sua forma de apresentar tais lendas, quase sempre sem afetação nem exagero. O que o mito necessita para se fazer assumir e perpetuar seus arquétipos é ser executado, ritualizado e repetido, por exemplo, a liturgia (missa) da Igreja Católica. É sempre a mesma coisa, e é assim como o mito opera, para escorrer em direção à História, e não o contrário, como se convencionou acontecer. Esse parece ser o vero cortejo de signos, símbolos, imagens: a História encontrando personagens para serem encenados seus autos e dramas no palco da vida e das comunidades. É possível constatar histórias subliminares nos acontecimentos maiores da polis; os papéis são distribuídos anonimamente e o palco da vida trata de encenar histórias do arco da velha.
5. Consultando um dicionário, encontrei uma bela definição da palavra lúdico: “que faz alguma coisa simplesmente pelo prazer de a fazer”. Não precisa ter noção do que é pintura e suas técnicas, suficiente permanecer algum tempo diante da tela e aguardar uma energia que assoma vinda de dentro da gente. Há de se observar as partes: textura da tinta, paleta de cores, o referente que está retratado. Depois, junte tudo e organize em uma peça só, para que o sentido não somente apareça mas também possa ser tateado o seu espírito, a fim de observar que sentimento ou emoção foram libertos das nossas entranhas.
Quero dizer com tudo isso, trazendo para a pintura de Carlos Gomes, que suas pinturas reverberam esse prazer de ter elaborado suas pinturas. É inegável que o conjunto da sua obra não apenas ocupou o tempo com algo construtivo mas também aplacou certas feridas que nunca saram. É até bom dizer que algumas pessoas não colocam fármaco algum para que cicatrize, optam por conduzir até seu fim o amor que depositavam na pessoa que se foi. Mas cada um é um.
Para encerrar este escrito, podemos, à guisa de análise e interpretação, nos deter sobre as telas que sugerem sua vida biográfica e sentimental. Há uma tela muito simples, uma casa no campo, que era conhecida como o casarão da localidade Estevão, em Açu. Isolada de tudo e de todos, amanha uma quietude interior. Há outra tela com o lugar onde funcionava a antiga faculdade de Direito, provavelmente onde se formou.
Mas a mais bonita e rica dos melhores sentimentos é uma mulher saindo de uma casa para ir em direção à casa da frente, que havia comprado. É a esposa do nosso pintor, preparando-se para a inauguração de uma nova casa, quer dizer, um contentamento interior pleno de alvíssaras. A casa estava contraposta, com seu jardim, aos edifícios e seus apartamentos, feitos como uma colmeia, na frieza e indiferença, sem socialidade, sem vizinhos para conversar. A casa, quase sempre, tem uma narrativa a contar: nos móveis, quadros nas paredes dos ancestrais, no pomar e no jardim. Outrossim, a casa resguarda a sombra de um morto ou mais que um. Quem já viu velório em apartamento? A casa é longeva, é uma herdade ainda habitada pelo seu patriarca, rodeada por casas pertencentes aos filhos, na Rua Coronel João Gomes, 555.