quarta-feira, 24 de abril de 2024

TACADAS DE MESTRES Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com 01) Há alguns anos, fui ao lançamento do livro do jornalista Paulo Augusto sobre “Zé Areia, o bufão de Natal”. Ótima iniciativa do editor Abimael Silva. Paulo Augusto com a sua verve e estilo inconfundível narra fatos pitorescos e incríveis idos e vividos pela figura de Zé Areia, lenda e legenda do humor natalense. Pesquisou e reuniu em livro tudo o que foi e representou esse “sábio” e sabichão chapliniano das Rocas, Ribeira e Cidade Alta. Esticando a conversa, Diógenes da Cunha Lima, presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Norte, lembrou que Zé Areia tinha o hábito de entrar de fininho na casa de Câmara Cascudo, na Junqueira Aires, só para surpreendê-lo de modo bizarro ou atípico. Calçar as meias do mestre, quando se achava sentado ao birô, de pijama, datilografando seus trabalhos. Com certeza, Zé Areia, com o gesto, incluía-se, na sua “acta diurna”. 02) Certa vez, Zé Areia, cortava o cabelo da turma da penitenciária “João Chaves”, ali onde hoje é o Centro de Turismo, em Petrópolis. Trabalho árduo e perigoso. Zé suava às bicas com medo dos erros de cálculo. Baracho, Pé Seco, Lolô, entre outros lampiônicos, eram mais terríveis do que os da chuva de balas no país de Mossoró. Certo dia, casualmente, encontrou-se com o monsenhor e governador Walfredo Gurgel. Incontinenti, pediu clemência e ingressou oficialmente com petitório incomum: “Padre, me aposente logo dali que eu lhe prometo só viver dois anos!”. 03) Dos arquivos implacáveis do saudoso tabelião Raimundo Barros Cavalcante, chegou-me essa história narrada pelo seu filho Paulinho sobre o folclórico Zé Areia. Homem pobre, Zé sempre recorria aos amigos pedindo ajudas providenciais. No cartório de Raimundo ele era “mensalista”. Todo fim de mês a tabeliã substituta Dione Macêdo estava autorizada a proceder o pagamento. Zé Areia chegava de mansinho, sentava, aguardava, recebia e ia embora. Mas, em dezembro ele recebeu a ajuda e permaneceu sentado e calado. Dione curiosa, perguntou: “Seu José o que está faltando?”. Zé Areia com aquela seriedade teatral responde sem perder a calma: “O décimo terceiro”. Raimundo, consultado, mandou pagar imediatamente. Zé Areia havia ingressado solenemente na folha salarial do cartório. 04) Lembrei-me da figura poética e etílica do grande Newton Navarro, mergulhando nas madrugadas profundas das Rocas, Quintas, Canto do Mangue, sem se aguentar mais em pé, sem companhia, sem proteção, sem táxi, exposto ao perigo, naquele baixo clero. De repente, impetra um inaudito habeas corpus que só aos poetas do seu porte é dado o privilégio: chamou o carro da polícia para deixá-lo em casa. E sempre foi obedecido. Era a proteção do estado à incolumidade física e intelectual do poeta da cidade. 05) Numa conversa descontraída, perguntaram ao ex-conselheiro do TCE Manoel de Medeiros Brito qual a sua definição sobre o casamento. De bate pronto, fulmina: “uma ilusão gratulatória”. De outra feita, Afonso, um dos seus motoristas da atividade oficial, recebeu dele um apelido que exprimia fielmente o significado de suas proezas de paquerador. Afonso era baixinho, entroncado, mas era querido do mulheril funcional que beirava a menopausa. E Afonso “passava” as gordinhas, mal-amadas, pernetas, num comovente “ofício de caridade”. Sabedor de suas façanhas, Brito desfechou-lhe um apelido definitivo: “Areia de Cemitério”. Come tudo. (*) Escritor

terça-feira, 16 de abril de 2024

Irmã Lúcia, apóstola de Caicó Padre João Medeiros Filho A população caicoense pranteia a perda de Irmã Lúcia Vieira, uma mulher de palavras suaves, gestos ternos, coração misericordioso e cheia de Deus. Durante mais de meio século, marcou Caicó, especialmente o bairro do Abrigo Pedro Gurgel. Animadora vocacional e pastoral, amiga e confidente de muitos, evangelizadora da juventude, anjo dos idosos e desvalidos, assim era a nossa saudosa freira. Trocou o clima serrano, onde vivia, no Ceará pela canícula de Caicó. Revelou um amor ardente pelos pobres, tal qual a temperatura cálida do sertão. Viveu a recomendação de São Vicente de Paulo a Luísa de Marillac: “Tereis por mosteiro a casa dos pobres; por claustro, as ruas da cidade; capela, o quarto dos enfermos; por hábito, a modéstia; e regra, o rosto dos sofridos.” Irmã Lúcia irradiava felicidade, fruto de sua intimidade com Deus e seu amor à Eucaristia. Ensinou às pessoas de seu tempo, sedentas de poder, bens materiais e opulência, que o essencial é a caridade. “Onde estão o amor e a caridade, Deus aí está” (cf. 1Jo 4, 8), cantamos nas celebrações litúrgicas. Ela via Cristo nos deserdados da sorte. Estes eram seus senhores e credores. Escutava-os, servia-os, curava-lhes as chagas do corpo e da alma. Tratava a todos igualmente, com carinho e consideração, pois vivia o Evangelho: “O que fizerdes a um destes pequeninos é a Mim que o fazeis” (Mt 25, 40). Encontrei Irmã Lúcia, pela vez primeira, em 1953, na missa solene de Nossa Senhora das Graças, celebrada por Padre Guilherme Lantman, no Abrigo, onde ela havia acabado de chegar. Anos depois, como sacerdote, estive várias vezes com a religiosa. Quando coordenador da pastoral diocesana, tive, em diversos momentos, a alegria de sentir a grandeza de Irmã Lúcia. Enquanto pároco de São José de Caicó, pude acompanhar de perto o profícuo apostolado da Filha de São Vicente. Meu primeiro secretário paroquial em Caicó, Osvaldo Oscar de Araújo, me aproximou ainda mais daquela santa freira. Certa feita, ela pediu-me para ajudar a pagar a conta de luz do Abrigo, onde residia. O valor da fatura era um pouco elevado. Irmã Lúcia mantinha ali uma sala bem iluminada para que os estudantes carentes (não dispondo de boa iluminação doméstica) tivessem melhores condições para estudar à noite. Solicitou-me ainda que mandasse fazer cópias das chaves de entrada do Abrigo-Dispensário. Desejava que os estudantes entrassem e saíssem discretamente sem despertar a comunidade religiosa e os idosos que lá habitavam. Outra ocasião, pediu-me que eu solicitasse a Dr. Vivaldo Costa para atender os velhinhos do Abrigo. Adverti que ele era pediatra. Retrucou, dizendo: “Para Deus, todos são crianças.” De profundo respeito aos cristãos, evitava qualquer gesto de divisão partidária. Não queria ligar a imagem das religiosas a líderes políticos. Por esse motivo, acompanhei as primeiras visitas do médico deputado com quem sempre tive laços de amizade. Por conta de um acaso ou desígnio de Deus, foi ela a autora do epíteto de Dr. Vivaldo, como “médico da mãe pobre”. Ao comentar a dedicação do referido pediatra com os menos favorecidos, usou a expressão e um jovem estudante ouviu de soslaio a referida frase, divulgando-a, assim consagrando a alcunha do atencioso médico. Irmã Lúcia faleceu em Natal, no dia seis deste mês, com noventa e nove anos, dos quais sessenta e quatro, marcados pela caridade e dedicados à juventude, aos idosos, carentes, esquecidos, doentes e excluídos de Caicó. Foi a sua grande missionária. Viveu uma “Igreja em saída”, segundo as palavras do Papa Francisco. Certa vez, um dos líderes políticos teceu uma crítica ao clero caicoense: “Alguns padres fazem o enterro dos importantes e ricos. Os pobres são encomendados por Irmã Lúcia. Ela assiste e socorre os desvalidos na vida e na morte.” A religiosa não poupava tempo e saúde. Acreditava que teria a eternidade para repousar. Em nossa última conversa externou o desejo de ser sepultada em Caicó. Mas, abnegadamente ponderou: “Não me pertenço. Sou de Deus e da Igreja.” Seu corpo descansa em Natal. Sua mensagem povoa o coração dos caicoenses. Sua alma está contemplando Deus. Indubitavelmente, ouviu de Cristo: “Vem participar da alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21)

sexta-feira, 12 de abril de 2024

QUANDO TUDO COMEÇA APODRECER Valério Mesquita* mesquita.valerio@gmail.com O homem social hoje virou ambiguidade ficcional. Previna-se o leitor: não confundir amizade social com solidariedade humana. São manifestações caracterológicas do vivente completamente heterogêneas. O egoísmo, a acomodação, modificadas pelo tom da luz reinante destruíram o sentimento cristão do mundo. O homem cresce, vive e morre numa jaula, limitado às imposições de sua vida miúda, repleta de frustrações e às circunstâncias. Há pessoas que pensam que não vão morrer nunca. Principalmente os que são ricos ou que, pelo menos, pensam. Assim imaginam muitos empresários, políticos, socialites, médicos, usineiros, juristas e outros nomes, renomes e pronomes suspeitos. Às vezes, diante do infortúnio alheio, ancoram suas amarras no mais profundo silêncio e na mais abominável indiferença. A postura ante o mundo é de desamparo e desalento. Não há lógica própria nessa conduta centrada unicamente na anormalidade do desvio comportamental porque a amizade virou interesse, esbulho, vantagem, lucro. A humildade e a caridade cristã teriam sido substituídas pelo messianismo dos “pobres de espírito”? Seria ataraxia, morbidez ou equívoco trágico imaginar que ninguém seu morrerá nunca? Mas a vida é um labirinto movida por difusa fluidez temporal, constituída de fases e de fezes (no sentido consumista, digestivo da palavra). E eu pensava nesse turbilhão do tempo, dos modismos, que o exercício da amizade fosse contínuo, mas é tão “imortal” quanto a hipocrisia de acreditar nos homens que integram as instituições públicas e privadas (culturais, políticas, empresariais, etc). Daí deduzir que toda celebridade quando não é célere e celerada. A corrosão cotidiana da busca pelo dinheiro e pelo poder enferruja com rapidez as “glórias e grandezas” de alguns profissionais que se julgam donos do mundo, quando pensávamos justos e coerentes. As mutações históricas dos valores da personalidade humana, ao que me parece, foram provocadas pela “revolução” dos costumes sociais, principalmente o comodismo, a apatia pelo semelhante, o medo de morrer, as fobias e a falta de religiosidade. Aí instaura-se um jogo de buscas. O coração desumanizado do selvagem habitante da cidade, que segrega o próximo jamais conhecerá qualquer modalidade de amor, principalmente na noite sem face e derradeira do ataúde, porque em vida foi ausente, insensível, reduzido à condição de bicho. Esse será o calvário do insensato, do que utiliza o poder público como negócio, como moeda de troca. Vai vagar como Caim na noite gelada do tempo sem jamais achar abrigo. Vale relembrar a canção de Chico Buarque de que “apesar de você, amanhã há de ser novo dia, sem precisar de pedir-lhe a licença para este dia amanhecer...”. É preciso preconizar mudanças, alternância de poder, não a reeleição... O poder nas mãos de um só ou de uma família, sem interregno de oposição, de luta, de sofrimento, vira casta, vício redibitório, potestade maligna e imoralidade insepulta. Vale relembrar aqui a desfaçatez de Frederico II, rei da Prússia, que poderia ser brasileiro: “Tudo para o povo, mas sem o povo”. Judas Iscariotes começou furtando um pouco o dinheiro da bolsa comum. Isso não parece dizer nada para certos gestores, prefeitos, vereadores, dirigentes de autarquias e demais autoridades parlamentares. O dinheiro é o verdadeiro inimigo e único rival de Deus. O dinheiro é o “deus visível” em oposição ao verdadeiro Deus que é invisível. Em 1 Timóteo 6:10, “O apego ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Daí a mudança ser tão convidativa em nossos dias quando enxergamos, à olho nu, certos administradores do dinheiro público. (*) Escritor.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Radicalismo e polarização Padre João Medeiros Filho O Brasil contemporâneo sofre de fortes manifestações de radicalismo. Talvez não tenha aprendido as lições do passado. A violência tem estado presente nas últimas décadas. As conquistas científicas e tecnológicas não impediram a disseminação de barbáries. Verifica-se o crescimento de irracionalidades, manifestadas em fanatismos, preconceitos raciais, sociopolíticos, econômicos, religiosos e culturais. Necessita-se de sólidos investimentos humanísticos para combater tal fenômeno. Sem isto, a pátria, apesar de tantos avanços técnicos, continuará padecendo de inconcebíveis retrocessos. Dentre os males que abrem feridas sociais está o extremismo, nutrindo insanidades ideológicas, absurdos partidários e provocando perdas irreparáveis. Problemas conjunturais agravamse e o Brasil hodierno não consegue dar novos passos, indispensáveis à dignidade humana. Conta muito a formação das consciências para superar os descompassos alimentados na mente das pessoas. A busca por grupos com força destruidora é a opção de parcela da sociedade. Tais segmentos acreditam que seus juízos sobre a realidade são intocáveis e irrefutáveis. Trata-se de uma postura que faz propagar arrogância, opressão, injustiça e desigualdade pelos recantos do país. Cabe citar Exupéry: “Para alguém compreender melhor e tocar outrem, necessita de uma transformação interior.” Há quem crie um ambiente propício a agressões e ataques demolidores, ao definir o próprio ponto de vista como o exclusivo critério de objetividade, realismo e verdade. Tomado por um espírito beligerante na defesa de suas convicções, perde o irrenunciável compromisso com o respeito ao semelhante. O postulado de muitos é destruir quem diverge e pensa diferente. Há cristãos que trocaram a espiritualidade pela ideologia, a prece pelas reuniões, a teologia pela sociologia, a fé pelo tecnicismo, a ética pela conveniência, a solidariedade pelo interesse grupal, a verdadeira caridade por atos demagógicos. Existe uma cegueira, impedindo de identificar corretamente perspectivas divergentes. Faltam ações que construam alicerces para o convívio humano. Os dissensos e discordâncias podem existir, mas nunca justificar agressões, violências e destruições. Cristo pregou abertura e compreensão: “A nós, portanto, cabe acolhê-los para sermos cooperadores com a verdade” (3Jo 1, 8). É necessário investir no respeito à vida, superando divergências e intolerâncias. Nesse caminho, importa cuidar para não eleger sua própria concepção como norma absoluta na interpretação da realidade. Apegar-se cegamente aos próprios conceitos, desconsiderando o semelhante, é pavimentar a estrada da polarização. Esta sói expressar-se de muitas formas, mormente no partidarismo intransigente, levando a movimentos agressivos e disputas fratricidas. É preciso edificar as bases da estima pelo outro. Sem o compromisso com a paz e o apreço ao próximo, simples divergências poderão agigantar-se, desencadeando ataques à integridade humana. O partidarismo aceita apenas o que endossa ou reforça a sua visão, negando outras perspectivas sobre os fatos. Percebe-se que para superar o extremismo é necessário exercitar a crítica das influências abscônditas nos porões do pensamento. Nesse exercício, deve-se cultivar o que gera a paz. Para isso é preciso estar vigilante para não se tornar hospedaria de ressentimentos motivados por opções ideológicas, inviabilizando a amizade social. Assim é possível ver com mais nitidez. Mister se faz contribuir para transformar a própria casa num território de fraternidade. Não se derrota o mal com a maldade, que sempre conduz a combates violentos e desavenças homicidas. O bem é alcançado com a bondade, rompendo o círculo vicioso da mágoa e do ódio. As virulências do radicalismo, não raro promovidas por interesses econômicos e políticos, pela vaidade da fama, por uma busca pela manutenção das “zonas de conforto” e por desvios psicológicos, deverão ser enfrentadas com verdade e justiça. A procura pela promoção do autêntico humanismo apresenta-se como um importante caminho nesse desafio. A sociedade pode aproximar-se dessa visão humanista ao reconhecer a sacralidade de cada pessoa. Nisto consiste igualmente a espiritualidade cristã e a mensagem do Evangelho. Esses passos dependem do cuidado com os códigos que regem o coração humano, o qual não pode deixar-se contaminar por pessoas e movimentos, eivados de hostilidades. Necessita-se pautar a convivência pelo respeito às diferenças, contribuindo para consolidar no mundo a paz e a amizade social. Tenhamos sempre diante de nós a recomendação do apóstolo Paulo: “Suportar as fraquezas e não buscar em outrem apenas o que nos agrada” (Rm 15, 1)

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Um bispado para Assú Padre João Medeiros Filho Câmara Cascudo, ícone da erudição e cultura potiguar, em “História do Rio Grande do Norte”, menciona a paróquia de São João Batista de Assú, como a segunda a ser criada em nosso estado. Isto ocorreu em 1726, no pontificado de Dom José de Fialho, bispo de Olinda. Seguiu-se à provisão canônica um decreto régio, em virtude da vigência do Padroado em Portugal. Entretanto, o historiador caicoense Monsenhor Francisco Severiano de Figueiredo assegura, em “História Eclesiástica da Parayba”, que Goianinha é canonicamente a segunda paróquia norte-rio-grandense. Em 1690, Dom Matias de Figueiredo e Mello erigiu aquela freguesia, dedicando-a a Nossa Senhora dos Prazeres. O citado sacerdote aventa a hipótese de extravio da documentação na Corte, não tendo recebido o edito real, perdendo a validade por força da Concordata. O ato oficial civil só veio a ser publicado em 1746, após a recomposição do processo e as tratativas de Dom Luiz de Santa Teresa da Cruz, quando bispo olindense. O sucessor de Dom Matias Figueiredo foi o religioso carmelita Dom Francisco Lemos. Este incentivou os confrades (por ele enviados à região mossoroense) a pensar numa futura paróquia. Favorecia a localização de Assú, no centro da Província. Ali, eram missionários os jesuítas, destacando-se em 1714 o Padre Miguel de Carvalho. O processo teve tramitação célere, em razão da distância de Natal, sede da única paróquia. Há mais de oito décadas, não se erige no território potiguar uma diocese. A população norte-rio-grandense em 1940, quando da instalação do bispado caicoense, contava 768.018 habitantes. Em 2021, consoante dados da Santa Sé, reproduzidos pelo site “Catholic Hierarchy”, o estado potiguar detinha 3,4 milhões de habitantes, dos quais 85% católicos. Hoje, apenas a população da diocese mossoroense ultrapassa o número de habitantes do RN naquele ano. É importante que os pastores atuais possam dizer, como Cristo: “Eu conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem” (Jo 10, 14). Dom João dos Santos Cardoso, arcebispo de Natal, sabiamente em sua primeira Carta Pastoral aos cristãos potiguares, manifesta o desejo de criar mais um bispado com terras desmembradas da arquidiocese. Expressa-se o nosso metropolita, no item 165 daquele documento: “Iniciar o processo de criação de uma nova diocese para melhor atender as necessidades específicas das regiões pastorais.” Referiu-se a um ponto fundamental: a especificidade das microrregiões. A paróquia de São João Batista de Assú canonicamente pertence à diocese de Mossoró. Caberá, portanto, a seu bispo pleitear a constituição de uma nova igreja diocesana. Para tanto deverá ter o assentimento dos titulares de outros bispados, caso algumas das paróquias de suas jurisdições venham a integrar a futura circunscrição. Desde 2001, tenho me manifestado sobre o assunto, em artigos publicados nos jornais: A Verdade, Jornal de Hoje e Tribuna do Norte. Atualmente, a densidade demográfica das dioceses potiguares (1, 1 milhão de hab.) supera a média nacional (750 mil). Caso sejam criadas mais duas sedes episcopais no RN, resultaria numa média de setecentos mil habitantes por circunscrição eclesiástica. De acordo com estudos do Vaticano, o ideal em população para uma diocese é não ultrapassar quinhentos mil habitantes. É relevante também o fator da distância. Por exemplo, São Rafael dista 220 km da sede arquidiocesana. “Não há quem não compreenda quão útil seja para as igrejas demasiado extensas a divisão em novas dioceses”, escreveu São Paulo VI, na Bula “Quantum conferat”, erigindo a diocese de Jundiaí (SP). Assú é polo regional, em torno do qual gravitam vários municípios. Sua vocação de liderança manifesta-se no comércio, na indústria, atividade agropastoril, fruticultura e oferta de serviços. Trata-se de um centro cultural e acadêmico com instituições de ensino públicas e particulares de nível fundamental, médio e superior. Acolhe muitos funcionários de empresas sediadas em municípios vizinhos, tendo a vida familiar, social, financeira e religiosa voltada para “a terra dos poetas”. Esta possui hoje uma população (58 mil) cinco vezes maior que a de Caicó, ao se tornar bispado e quase o triplo de habitantes de Mossoró, quando constituída em sé episcopal. Natal, ao ser alçada à condição de bispado, tinha menos de trinta mil pessoas. Disse Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15).

domingo, 31 de março de 2024

Cartas de Cotovelo – Outono de 2024 – 06 Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes
A PÁSCOA DE CADA UM É do costume judaico-cristão a comemoração da Páscoa, representando um registro de passagem de libertação do povo Hebreu ou da Ressurreição de Jesus Cristo. Em minha reduzida percepção teológica, considero como Páscoa, embora em outra dimensão, a passagem de quem está perto de nós para um outro plano, este de plenitude espiritual, mas igualmente marcante de um momento triste, como poderia ser de alegria, enfim, uma passagem de acontecimento relevante. Dentro dessa concepção, registro hoje uma passagem de lembrança, de tristeza mesmo, mas de exemplo de vida bem vivida, de compartilhamento muito isonômico de amor, caridade e solidariedade que durou no plano terreno exatamente até 31 de março de 2019, quando não despertou do sono natural dos viventes a minha companheira de 71 anos de convivência THEREZINHA ROSSO GOMES. São cinco anos da viagem final dessa criatura de Deus, de quem tive a dádiva de receber como presente para tanto tempo de caminhada. Chorei muito, mas hoje procuro celebrar sempre a sua partida como uma passagem e, por esse motivo, comemoro o fato como Páscoa, sem medo de cometer qualquer sacrilégio. Por essa razão, substituí a dor pela esperança e pela alegria de poder manter no meu santuário particular uma mulher que tudo fez pela família e pelo próximo. Até os mendigos lamentam a sua ausência, pela bondade e pela luz que transmitia em todos os seus gestos. É bem de ver, entretanto, que não posso evitar alguma lágrima atrevida no instante em que redijo essa crônica de saudade. FELIZ PÁSCOA DONA THEREZINHA.

sábado, 30 de março de 2024

Cartas de Cotovelo – Outono de 2024 – 05 Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes
Ainda sob o efeito das águas do inverno deste mês de março, em passagem por Cotovelo para um período de meditação, senti poucas as forças para qualquer esforço físico, senão assistir a Santa Missa da Quinta-Feira Santa, na Igreja de São Francisco em Pirangi. Contudo, tive tempo suficiente para uma introspecção do caminhar desta vida cansada, da qual já tive pressa em tempos passados, fazendo presente a presença espiritual da minha eterna THEREZINHA, lamentando não estar comigo nas confabulações metafísicas que a casa de praia nos permite, com pouquíssimos acompanhantes. Minha inesquecível companheira completará exatamente cinco anos da sua passagem para a vida eterna no dia da Ressurreição de Jesus. Sem coragem para ver o longo mar, preferi o infinito do sol, mesmo com chuvas e trovoadas que aqui chegaram, por coincidência? no instante exato em que morreu na cruz o nosso Salvador. Dentro do possível cumpri o dogma do jejum, mesmo assim a perseguição do medidor de insulina ficou entre as casas dos 200 para 400. Talvez seja esse o motivo de tanta sonolência. Agora, por impulso da razão, fiz este tremendo sacrifício de vir ao computador para expressar o meu sentimento de profundo respeito e isolamento e fazer os agradecimentos ao nosso Cristo Sofredor pela sua sagrada missão na terra em favor dos seus filhos humilhados, abandonados ou não, e fazer a preparação para as Páscoa. Páscoa se origina da palavra em latim Pascha, que deriva do hebraico Pessach/ Pesach, e significa “a passagem”. (Llibertação do povo israelita da escravidão no Egito), conforme o Antigo Testamento. Ela é celebrada pelo povo Cristão, e também pelos judeus, com rituais diferentes e datas – aquele ligado ao fenômeno lunar (primeiro domingo após a lua cheia) e este pelo sistema lunissolar, mas ambos para comemorar a liberdade conquistada pelo seu povo. Infelizmente, essa libertação do povo Hebreu está maculada por uma guerra inconsequente entre irmãos, vindos dos mesmos troncos, mas separados por contingências esdrúxulas acontecidas no caminho da Terra Prometida. O Novo Testamento tem a Páscoa como celebração da passagem da morte para a vida, através da ressurreição de Jesus Cristo. Com a morte do Salvador termina a fase da Quaresma, onde os fiéis cristãos devem permanecer por 40 dias em penitências e períodos de jejum. Mesmo com a diferenciação de rituais em ramos do Cristianismo, nada impede que sigam o mesmo caminhar para a Fé, Esperança e Caridade, possibilitando, no futuro, a consagração de uma só Igreja e um só Pastor.

quarta-feira, 27 de março de 2024

QUARTA-FEIRA DE TREVAS Narrativa bíblica Logo depois dos eventos do Domingo de Ramos, o Sinédrio se reuniu e planejou matar Jesus antes da festa da Páscoa Judaica (relatos em Mateus 26:3–5, Marcos 14:1–2 e Lucas 22:1–2). Na quarta-feira antes de sua morte, Jesus estava em Betânia, hospedado na casa de Simão, o Leproso. Enquanto jantavam, uma mulher chamada Maria ungiu a cabeça e os pés de Jesus com um caro óleo de nardo (Mateus 26:8–9, João 12:5 e Marcos 14:4–5). Mas Judas Iscariotes, que cuidava do dinheiro do grupo de Jesus, queria ter utilizado o dinheiro para dar aos pobres (ou para si mesmo, segundo João 12:6).[2] Logo depois do evento, Judas foi até o Sinédrio e ofereceu-se para entregar Jesus em troca de dinheiro e, a partir daí, só lhe faltava encontrar a oportunidade ideal (Mateus 26:14–16, Marcos 14:10–12 e Lucas 22:3–6). (WIKIPÉDIA)
O mistério pascal Padre João Medeiros Filho Eis-nos novamente prestes a celebrar o grande mistério do cristianismo: a Páscoa do Senhor. O tríduo pascal começa após a Última Ceia, na qual Cristo, na grandeza de seu amor, foi entregue para salvação dos homens. Somos convidados a meditar sobre seu sofrimento, decorrente de um julgamento injusto e apressado, culminando com sua condenação. Foi torturado, escarnecido e finalmente crucificado fora das portas da cidade, em suplício reservado a bandidos e marginais. Depois disso, houve um tempo feito de ausência e silêncio, resultando na celebração da vitória de sua Ressurreição. Festa de alegria e vida em plenitude. A liturgia é permeada de aleluias e cânticos de louvor, aclamando Aquele que venceu a morte e nos faz renascer. Mas, o júbilo da Ressurreição teve um preço imensurável: a trajetória de um inocente vilmente traído. Entretanto, no gesto de Cristo, Deus proclama ao mundo que “o amor é mais forte do que a morte” (Ct 8, 6). Ele levou Jesus à Cruz, na qual fez a entrega de si mesmo, numa doação desinteressada à humanidade. Assumiu a perseguição e a rejeição, até perder a vida para que outros pudessem tê-la. Os primeiros cristãos – no deslumbramento de encontrar vivo Aquele a quem haviam contemplado morto – começaram a compreender o sentido e narrar a Paixão do Filho de Deus. O seguimento a Jesus de Nazaré, designado pelas igrejas orientais como o “Senhor Exaltado”, foi sendo compreendido como uma experiência de paz e alegria. Porém, nela a dor não está ausente ou esquecida. Se algo mais pode ser dito a respeito de Cristo: Ele era um apaixonado pelo ser humano. Daí nasce o sentido de sua Encarnação, a inspiração de suas palavras. Pela força desse sentimento curou doentes, possessos e ressuscitou mortos. Por ela impulsionado, acolheu os gestos de gratidão de uma pecadora, do publicano que lhe ofereceu hospedagem, do leproso que quis tocá-lo, da samaritana que Lhe deu água para beber e fez perguntas. E ainda obedecendo ao amor pelo Pai e pelos homens, começou a caminhar em direção a Jerusalém, seguido por duvidosos e apavorados discípulos que nada entendiam de seu padecer. Chegando à cidade onde morreram tantos profetas, Jesus chorou. Derramou lágrimas de sentida compaixão, as quais nada tinham de autocomiseração pelo destino que o aguardava. Sentia uma visceral tristeza por não ter conseguido reunir em seu misericordioso regaço “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10, 6). E ali, a fidelidade de Jesus – pelo Pai, pelo Reino e por aqueles que Deus Lhe dera – converte-se na liturgia da agonia e morte, consumada no Gólgota. Viver a Semana Santa é aceitar o convite para apaixonar-se. Ela apresenta-se como uma estrada cheia de luz, que se descortina no Mistério Pascal. Iluminado será também o caminho de quem busca a Vida. Apesar do sacrifício por ninguém imaginado, dá-se o percurso da doação. Na mística cristã, se não há algo pelo qual nos encantamos, não valerá a pena viver. Terá sentido uma vida que se resume à parca moral, raquíticos prazeres, insípida segurança, solitárias sensações? “O exemplo de Jesus ensina que se apaixonar por Deus é a única maneira de viver em plenitude”, escreveu Edith Stein. A alegria pascal que se segue ao sofrimento da Cruz é real. Mas, só acontece se não houver recusa ou negação do padecimento, inclusive daquele que se abate sobre os irmãos. Quem segue Cristo Ressuscitado, já não vive para si, mas para Ele. A euforia autêntica da Páscoa deve recordar-nos que somos discípulos de um Deus: Cristo. Foi condenado à morte, crucificado pelos que odiavam a verdade e eram apegados a privilégios. O seguidor de Jesus é aquele que se encanta pelo Evangelho em seus sons e tons de Verdade, Paz, Justiça... Ao segui-Lo, alguma porção de responsabilidade participativa na dor do próximo nos está reservada. Assim agiu Cristo. Cabe-nos esperar por Deus pronunciando sobre nós a palavra definitiva da Vida que não morre. O Espírito derramará em nossos corações a alegria imorredoura que jorrou na noite gloriosa e fulgurante, em que o Messias venceu a morte e se manifestou vitorioso aos seus. “Onde está, ó morte, a tua vitória?” (1Cor 15, 55)

quarta-feira, 20 de março de 2024

MÚSICA POTIGUAR BRASILEIRA Valério Mesquita* mesquita.valerio@gmail.com Não é pretensão, arrogância ou entusiasmo pueril. Não é uma constatação baseada em suposto direito. Antes de tudo é uma conquista. Existe, sim, hoje, uma música potiguar brasileira formada por expressões que nada ficam a dever aos compositores e intérpretes do Ceará e Pernambuco. Nesses estados o poder público, a iniciativa privada e a mídia atuam financeiramente e divulgam os seus artistas. No Rio Grande do Norte o apoio é tímido e, até parece, que não acreditam no potencial do talento do musicista, na sua criatividade e na beleza de sua poesia. A característica hereditária da cultura musical potiguar vem de um Otoniel Menezes, Eduardo Medeiros, Tonheca Dantas, Felinto Lúcio, das modinhas de Auta de Souza, da inspiração de K-Ximbinho e Hianto de Almeida, um dos precursores da bossa nova. O tempo e o vento, o sol e as águas do Potengi esculpiram uma nova constelação musical no Rio Grande do Norte que me entusiasma e me induz a aplaudir a todos quantos prestigiam os compositores e intérpretes – alguns deles - somente comecei a ouvi-los através dos programas da Rádio FM Universitária. Ao ouvir “O Poema Nordestino”, “Forró pra valer” de Galvão Filho e Chico Morais cheguei ao CD e ao autor, que é filho do saudoso Severino Galvão. Trata-se de uma “família musical”, a começar de D. Elvira Galvão, no seu reinado da Avenida 10, ensinou aos filhos a “arte milenar do rabequeiro e do sanfoneiro”: Erinalda, Erineide, Eri, João Galvão e o grande Babal. O CD contém treze composições da mais fina poética nordestina, sem o lugar-comum dos apeladores do erotismo e da imoralidade que corrompem o sentimento da alma sertaneja. “Não, na minha rede”, “A energia dos Cristais”, “Tem dez no forró”, “Saudade D’ocê”, são versos que relembram Gonzagão, Humberto Teixeira e tantos outros reis do baião e da arte popular. O Rio Grande do Norte tem a sua música popular genuína nascida das raízes, da gente e do folclore. Esse plantel notável inclui Elino Julião, Enoch Domingos, Chico Morais, Cezar e Zé Fontes, Almir Padilha, Dozinho, Tarcísio Flor, Lane Cardoso, Marina Elali, Carlinhos Zens, Glorinha Oliveira, Rejane Luna, Zé Dias (animador cultural), Lucinha Lira, Regional Sonoroso, Paulo Tito, Liz Nôga, em nome de quem saúdo os grandes cantores da música seresteira do Rio Grande do Norte. Não cabem aqui nestas linhas mencionar todos. Mas, uma coisa se torna importante: a conscientização de que temos uma música potiguar brasileira e que precisa ser valorizada o quanto antes. (*) Escritor.

terça-feira, 19 de março de 2024

São José, o santo das chuvas Padre João Medeiros Filho O culto a São José teve início no Egito, passando mais tarde para o Ocidente, onde alcança atualmente expressiva receptividade. Em 1870, Pio IX o proclamou Patrono da Igreja. A partir de então, passou a ser festejado no dia 19 de março, próximo à solenidade da Anunciação do Anjo a Maria Santíssima. Durante séculos, foi um tanto esquecido na Igreja ocidental. Isso pode-se explicar pela necessidade de ressaltar o testemunho dos mártires dos primeiros séculos do catolicismo. Na Prece Eucarística I, além dos nomes dos apóstolos, consta a lista de doze martirizados. A inserção de José naquela oração ocorreu em 1962, no pontificado de João XXIII. Este o tinha como protetor, apondo Giuseppe, como um de seus prenomes. Em 2013, o Papa Francisco o adicionou às demais Preces Eucarísticas do Missal Romano. São José era muito reverenciado pelos eremitas e anacoretas, que viviam no deserto. Observantes do silêncio e da contemplação, veneravam-no como protótipo de tais virtudes. O Novo Testamento não registra palavras pronunciadas pelo santo carpinteiro. Peregrinando no deserto, os monges tinham dificuldades em encontrar água. Rezavam ao Esposo de Nossa Senhora para que lhes saciasse a sede. Acredita-se que por essa razão, tornou-se o padroeiro das chuvas e águas, no Oriente. Segundo o costume hebraico da época, as mulheres dirigiam-se às fontes hídricas. É clássico o episódio da samaritana, à beira do Poço de Jacó (Jo 4, 5ss). Em Nazaré, José substituiu Maria, que grávida, não podia dirigir-se aos mananciais para apanhar água. Nasceu, então, o seu culto como o santo das chuvas, de grande devoção dos nordestinos. Os sertanejos esperam que chova no dia de sua festa. Acreditam que se houver precipitação pluviométrica nessa data (ou perto dela) é sinal de um inverno copioso. A crença religiosa é explicável também cientificamente, pois perto da data festiva ocorre um fenômeno no movimento da terra, denominado equinócio do outono. O saber popular, apesar de não gozar de precisão científica, é digno de crédito. Para o homem do campo, o conhecimento pragmático é verdadeiro e fidedigno. Ele faz a leitura do universo, a partir das experiências cotidianas. No equinócio do outono os dois hemisférios terrestres estão igualmente iluminados pelo sol. A incidência dos raios solares na linha do equador acaba atraindo ventos úmidos para a região nordeste, geralmente fazendo chover. Assim, a religiosidade apresenta uma fundamentação meteorológica. O dia 19 de março acontece perto do equinócio outonal, quando o sol, em sua órbita, passa a influenciar o hemisfério norte. Ressalte-se o posicionamento da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). Para Oswaldo Lamartine, considerado o doutor potiguar da cultura dos sertões, formado pela Escola de Agronomia de Lavras (MG), “a crença sertaneja tem amparo científico.” Faz sentido para a região do nordeste brasileiro, por conta de sua posição geográfica. Existe uma faixa de terra praticamente paralela ao equador em que os ventos do hemisfério sul se encontram com os do norte, que são ventos alísios. Essa zona de convergência intertropical é de grande importância para as chuvas. A mudança acontece com a chegada do outono, em 20/21 de março, quando há redução de temperaturas e aumento de umidade. Isto faz com que os sistemas meteorológicos fiquem mais carregados. E o Senhor “cobre o céu de nuvens e prepara as chuvas para a terra” (Sl 147/146, 8). Os dados da ciência são reforçados pela religiosidade. Em Caicó (RN), como pároco de uma comunidade, dedicada a São José, lidei com as “experiências e profecias” dos sertanejos sobre o dia de sua festividade. A fé no padroeiro dos operários é tanta que muitos agricultores plantam milho e outras sementes no dia 19 de março, confiando na colheita para as festividades juninas de São João e São Pedro. Não se pode desprezar as possibilidades de verificação do universo no dia-a-dia do camponês. Tal como os meteorologistas que fazem suas previsões, através da leitura das condições atmosféricas, da temperatura dos oceanos, das condições dos ventos e outros fenômenos da natureza, o rurícola tem seus métodos próprios para fazer a previsão do tempo. “E Deus mandou do céu chuvas e colheitas, dando alimento e alegrando os vossos corações” (At 14, 17).

sábado, 16 de março de 2024

LEIAM A BÍBLIA Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com “Pois não me envergonho do evangelho de Cristo, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. (Romanos 1.16).” Não li, em minha vida, tanto quanto gostaria de ter lido sobre autores das literaturas brasileira, francesa, portuguesa e inglesa – as minhas prediletas. Enveredei cedo pela política gastando o meu tempo e o latim. Mas selecionei e degustei obras preferidas. O tempo passou. Sem vocação para a advocacia não me interessei pelos filósofos e juristas. Admirava-os sem conhecê-los bem. As biografias dos grandes estadistas, os episódios marcantes da história da humanidade me alimentaram por algumas estações. Enfim, tenho do mundo uma visão humanista, política, administrativa e social. A chamada cultura bacharelesca sintonizada com o homem e o ambiente em que vive. Sou um provinciano saudosista ou memorialista, como queiram. A leitura da Bíblia, desde a fase adolescente, pouco me seduzia, mesmo tendo estudado oito anos no Colégio Marista, ao qual muito devo a minha formação educacional e espiritual. Estudava-se a história sagrada de forma pedagógica dos livros da FDT. Quase não se compulsava a Bíblia. Percebo, hoje, o quanto isso me fez falta. Agora, na maturidade, senti uma imensa sede da palavra dos evangelhos, dos profetas, dos salmistas e das epístolas do maior de todos os apóstolos: Paulo de Tarso, o que fora perseguidor dos cristãos, que contribuiu para o martírio de Estêvão e que estava ao lado da guarda pretoriana quando Jesus foi crucificado. Aquele mesmo chamado depois por Cristo para receber o Espírito Santo de Deus e se tornar o mais importante pregador do cristianismo em diferentes partes do mundo até os nossos dias. Ah! Como seria bom se ele pudesse pregar ao vivo, em Aparecida, São Paulo, perante os maiores dignitários deste mundo, realçando sempre acima dele, mais a Santíssima Trindade do que o homem mortal, como atualmente assim não agem certos pregadores sem humildade através do aparato humano, do show gospel, da cantoria vulgar, da banalização do nome de Jesus Cristo e de falsos milagres por intermédio da televisão comercial. Se lhe fosse dada a chance de exortar que: “Só há um Senhor, uma só fé e um só batismo”. E que há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. “Sede uns para com os outros benignos, perdoando-vos uns aos outros como Deus vos perdoou em Cristo. Sede imitadores de Cristo e que ninguém vos engane com palavras vãs”. (Efésios). Falta em muitos doutores das igrejas da modernidade o sentimento da humildade que o apóstolo Paulo detinha. Disse ele em Coríntios: “Sou o menor dos apóstolos e não sou digno de ser chamado apóstolo pois persegui a igreja de Deus”, apesar de Cristo viver nele. E se lhe dessem a oportunidade de falar na rede Globo para todo o Brasil e principalmente para o Rio de Janeiro: “Se esperamos um Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. Pois, Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis, e as que não são para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele”. Por isso, hoje proclamo: leiam a Bíblia. Além de instruir, ela santifica. (*) Escritor.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Sobre a expressão “de ovo virado” Padre João Medeiros Filho Este é um dos ditados bastante empregados por nossa gente. Consoante anotações do antropólogo e folclorista alagoano Théo Brandão, o dito popular é de conhecimento e emprego em vários estados brasileiros e algumas regiões de Portugal. De onde provém essa história de ovo virado? A sabedoria popular é de uma riqueza inestimável. As expressões, em geral, aparentemente desprovidas de fundamentos científicos e acadêmicos, partem da observação empírica. Uma vez criadas, caem como uma luva sobre a realidade individual ou coletiva. O adágio aqui aludido é de origem doméstica, nascido da observação do povo, especialmente do mundo rural. Há várias versões sobre a sua proveniência. A primeira delas seria uma analogia com o nascimento dos bebês, que durante um parto normal, colocam-se de cabeça para baixo, a fim de não trazer demasiado sofrimento à mãe. Da mesma forma, diz o saber popular que o ovo da galinha necessita estar com a parte mais fina para baixo, na hora de ser expelido. Caso esteja ao contrário, a ave passa por momentos dolorosos, podendo até morrer. A maioria das pessoas fica nervosa e mal-humorada ao sentir dor. Isto acontece inclusive com os animais. Daí, provavelmente foi criada a expressão: estar, ficar, acordar de ovo virado. Uma segunda interpretação para o axioma origina-se da experiência culinária. Ao fritar um ovo do tipo estrelado, a cozinheira vira-o para verificar a sua cocção e, às vezes, ele se parte. Isso causa descontentamento a quem o prepara e diante da situação em que pretendia um ovo inteirinho, fica chateado, tendo que refazer o trabalho. De acordo com certas fontes, uma terceira versão para o ditado está relacionada com a medicina. Tratase talvez daquilo que os médicos denominam torção testicular, muito dolorosa, conhecida popularmente no interior do país como ovo virado (torcido). Os urologistas poderão explicar melhor. A sabedoria popular emprega metáforas, partindo de situações rotineiras. Essa expressão está relacionada a situações indesejáveis e desagradáveis, das quais derivam aborrecimentos e mal-estar. O adágio aplica-se a muitas situações em diferentes aspectos da vida humana, notadamente nos relacionamentos funcionais. Existem pessoas com as quais é complicado lidar, sendo de difícil convivência. A elas encaixa-se bem o axioma citado. Estão sempre de mal com tudo ao seu redor, reclamando disso ou daquilo. Nada está bom ou lhes agrada. Geralmente, de semblante fechado, o sorriso não aflora em seus lábios. Tampouco se entusiasmam com o espetáculo da natureza e a beleza das crianças. Um gesto cordial de tais indivíduos é raro como chuva no deserto. Estar ao lado de alguém de constante mau humor é entediante. Mesmo diante de personagens de ovo virado, não se pode perder a alegria da vida, dom supremo de Deus. Lembremo-nos da recomendação do apóstolo Paulo aos colossenses: “Revesti-vos, de ternura, misericórdia, bondade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros” (Cl 3, 12). Há os antipáticos funcionais. Alegam que, ao exercer a função de chefia ou coordenação, precisam estar sempre insensíveis e impermeáveis. Certos patrões, na convivência cotidiana com seus subalternos, acham que estes devem ser tratados com desprezo, não sendo merecedores de gentilezas. Equivocadamente, argumentam que devem evitar que se tornem familiarizados. Eis o conselho bíblico: “Desapareça do meio de vós todo amargor, toda ira e gritaria. Portanto, sede bondosos e compassivos” (Ef 4, 32). Em todas as partes do mundo, existem pessoas, que bastam subir um degrau social, funcional ou financeiro, mudam de personalidade, achando-se superiores. Um aforismo espanhol diz: “Si quieres saber cómo es fulanito, dále un carguito.” (Se desejas saber como é alguém realmente, dá-lhe um cargo, por menor que seja). Mostram sempre uma cara sisuda, como se tivessem engolido algo azedo ou intragável. O ser humano continua imaturo. Não consegue aceitar que a vida é efêmera e todos são iguais diante da realidade da morte. Consequentemente, deveria ser assim também diante da vida. Eis o que nos ensina Paulo, em sua Carta aos cristãos de Roma: “Que o amor fraterno vos una uns aos outros, com terna afeição, estimando-vos reciprocamente” (Rm 12, 10)

sexta-feira, 8 de março de 2024

Hoje é o Dia Internacional da Mulher. Por que? Suas sementes foram plantadas em 1908, quando 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York exigindo a redução das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto. Um ano depois, o Partido Socialista da América declarou o primeiro Dia Nacional das Mulheres. Contudo, independentemente desse fato, a mulher, ao longo da história, sempre se fez presente em vários vetores da existência - mulheres santas, mulheres guerreiras, mulheres do lar e mulheres, apenas mulheres da vida ou do mundo. Cada uma sabe a sua missão e oferta exemplos de maneira incontáveis. Toda família tem seus exemplos. Por isso falo da minha mãe - heroina na criação de sete filhos, acompanhando o meu pai pelas comarcas do interior e solidificando o futuro de cada fruto de seu desvelo. Foi múltipla, vencedora. Minhas irmãs Lêda, Elza e Socorro, cada uma com histórias duras, mas igualmente vencedoras. Minha inesquecível Therezinha, parceira durante 71 anos, deixou dois exemplos de coragem nas pessoas de Rosa Ligia e Thereza Raquel. Por tudo isso, neste dia, reverencio todas elas - espiritualmente pelas que partiram e fraternalmente para as que continuam a labuta diária, como guerreiras. PARABÉNS A TODAS AS MULHERES - ELAS MERECEM.

terça-feira, 5 de março de 2024

REVISTA GENEALÓGICA BRASILEIRA OS MIRANDA-HENRIQUES A vasta e prestigiosa família de minha mãe foi transplantada de Portugal para o Brasil no século XVIII. Fundou-a, no Nordeste, Francisco Xavier de Miranda Henriques, que, durante quase 19 anos, exerceu no Brasil os elevados postos de Capitão-Mór e Governador das Capitanias do Rio Grande do Norte (11 anos e meio), Ceará (4 anos) e Paraíba (3 anos). Era Cavalheiro professo na Ordem de Cristo. Moço Fidalgo da Casa Real, aparentado com as famílias mais ilustres do Reino. Os Mirandas–Henriques tiveram posição de excepcional relevo entre a nobreza lusitana. Desde o século XVII se entrelaçaram com a família dos Condes de Avintes. Uma neta do 1º Conde, Teresa de Borbom, filha do 2º Conde (D. Antônio de Almeida), casou em 1604, com D. Álvaro da Silveira e Albuquerque, que foi Governador do Rio de Janeiro, de 1702 a 1704, e faleceu em 1716. Entre outros filhos, tiveram Maria de Borbon, que casou com Antônio de Miranda Henriques, Senhor das Vilas de Carapito e Cadriceira, Comendador de Santo Estevão de Passos, na Ordem de Cristo e outras; foi Governador e Capitão General de Mazagão, do Conselho de Sua Majestade. Foram pais de José Joaquim de Miranda Henriques, que nasceu a 4 de dezembro de 1718, e casou com a Condessa Ana de Lima, viúva do 4º Conde da ilha – e de Manuel de Miranda Henriques, Cônego da Basílica Patriarcal, nascido a 30 de abril de 1722 (1). Sobre a origem desta família escreve o Visconde Sanches de Baena (Indice Heráldico, pág. LXXXVI): “Henriques, de Castela . Descende esta família, sem dúvida, de D. Fernando Henriques, filho natural do rei D. Henrique de Castela e de D. Brites Peres de Ângulo, que vindo para Portugal, foi neste reino tratado como filho de rei, e dele procedem os senhores das Alcáçovas, e por fêmea todos os Miranda Henriques, e muitas outras famílias; porque todos folgavam de aparentar com eles. São suas armas o escudo mantelado: os dois campos altos vermelhos, e em cada um seu castelo de ouro, o de baixo de prata com um leão vermelho.” Luís de Miranda HENRIQUES, “herdeiro da casa de seu pai”, comendador de S. Julião, Santo André de Sever, Santa Maria de Pena Águia e de Santa Eulália de Balzar, na Ordem de Cristo, casou , em 3 de dezembro de 1702, com Madalena Luíza de Borbon, irmã de D. Pedro de Mascarenhas de Carvalho, nascido em 1670, feito Conde S. Domil por D. João V, que o despachou para Vice-Rei da Índia, em 1732. Luís de Miranda Henriques foi coronel do Regimento da Armada e General de Batalha, posto em que serviu na guerra de 1704”. (D. Antônio Caetano de Souza, op. cif. vol. XI, págs, 910 e segs). O Rio de Janeiro foi governado, de 1633 a 1637, por um Miranda Henriques – Rodrigo – que foi Cabo Militar da Praça da Baía, Capitão da Companhia de Arcabuzeiros, e sucedeu a Salvador Correa de Sá e Benevides no governo de Angola, onde faleceu, em 1652. (Pizarro – Memórias Históricas do Rio de Janeiro, tomo II, PÁG. 250: Baltazar da Silva Lisboa – Anais do Rio de Janeiro, pág. 113, tomo I). Quanto às armas dos Mirandas-Henriques, assim se expressa G.L. dos Santos Ferreira (Armorial Português, Lisboa, 1925, pág. 167, I Parte); ________________________ (1)Sobre os Miranda-Henriques ler o Cap. XV do Vol. XVI da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, 1743, de D. Antônio Caitano de Souza, intitulado “De D.Branca de Eça e sua descendência”, pág.764 “765 --- Henriques (de D. Fernando Henriques). De vermelho, com um castelo de ouro, de três torres; mantelado de prata, carregado de dois leões de púrpura, o da direita voltado (2). “Timbre --- O castelo do escudo, a torre do meio encimada por um leão de púrpura, sinte. O fundador da família Miranda-Henriques no Brasil, o velho Capitão-Mór, pertencia ao ramo Sandomil, isto é, à mais alta nobreza de Portugal. No perfil do Marquês de Pombal, Camilo Castelo Branco descreve (págs.17 a 41) o torneio havido em Lisboa, em 1738, por iniciativa do Visconde de Vila Nova de Cerveira, estribeiro-mór da Princesa do Brasil , o qual “convocou trinta e dois fidalgos da primeira grandeza, para festejarem o natalício da futura rainha D. Maria Vitória, com escaramuças militares, ao estilo africano, e corrida de touros pelos fidalgos mais peritos e celebrados nessa prenda”. Os nobres constituíam quatro grupos ou fios, de oito cada um, encabeçados por um guia. O 4º grupo era assim composto: GUIA Conde S. Miguel {D. Francisco de Meneses (Ericeira) [Visconde de Vila Nova de Cerveira (Teles) CAVALEIROS {D. Álvaro José Botelho (S. Miguel) { Francisco Xavier de Miranda Henriques (Sandomil) { D. Marcos de Noronha (Arcos) { José Joaquim de Miranda Henriques CONTRA-GUIA D. Luís de Souza (Calharis) Eis a alta Hierarquia do Capitão-Mór que, no ano seguinte àquela cavalhada, assumia o governo do Rio Grande do Norte, no qual se manteria por quase doze anos, austero, decente, de uma proibidade proclamada pelos documentos da época e pelos historiadores que têm apreciado a sua administração naquela Capitania e nas do Ceará e da Paraíba. Tendo assumido o governo a 18 de dezembro de 1739, deixou-o a 30 de maio de 1751. Foi muito combatido, em virtude, única e exclusivamente, de sua irredutível integridade, que não vacilava em contrariar interesses prejudiciais à causa pública. O Senado da Câmara de Natal chegou a representar a EL-Rei contra o Governador, um pouco desprimorosamente, diga-se de passagem, porque ele já estava aguardando substituto quando ocorreu a lembrança da representação: “Temos por notícia que se acha provido Pedro de Albuquerque e Melo para Capitão-Mór desta Capitania ... Diremos a V. Majestade que os governadores por estarem a mais de três anos causa grande descômodo ao povo, porque se afeiçoam a algumas pessoas e por razão destas fazem injustiças. “ (Tavares de Lira - História do Rio Grande do Norte, pág. 325). (2) “Em Espanha trocam a ordem do mantelado, tomando por lugar principal o mantel, e por lugar secundário o campo do escudo . Assim usam, em Portugal, a casa das Alcáçovas e os Miranda-Henriques.” As armas dos Miranda-Henriques ornam o teto do Paço de Sintra. (Anselmo Braancamp Freire – Os Brasões da sala de Sntra, vols.) Sobre ele escreveu o ilustre historiador norte-rio-grandense, desembargador Antônio Soares, na “República”, de Natal, 13 de julho de 1930: Miranda Henriques era Moço Fidalgo da Casa Real e contava, ao tempo da nomeação, 18 anos, 11 meses e 29 dias de serviço no Reino de Portugal e na praça de Mazagão, a princípio como soldado de Cavalaria no regimento de que foi Coronel-Brigadeiro o Marquês de Marialva. Em 1733, ainda em Mazagão, continuou voluntariamente no serviço da praça, como soldado infante, passando depois a cavaleiro, “acobertado com armas e à sua custa” –e outra vez soldado infante, ocupou o posto de capitão da infantaria, por patente do governador da dita praça, João Jacques de Magalhães. Em todo esse tempo, “sem nenhuma nota” -- diz a Parente Real – Miranda Henriques achou-se em várias ocasiões de combates travados contra os mouros, mostrando “valor e assistindo as suas obrigações com pontualidade e obediência”. Nos dois anos seguintes, entrou em novos reencontros, portando-se com abnegação e coragem. Em 1736, constando que uma embarcação moura achava-se ancorada para dentro do cabo de Azamor, o governador de Mazagão, Bernardo Pereira de Berredo, enviou, para capturá-la, dois barcos armados em guerra, indo um deles o capitão Miranda Henriques, que agiu “com grande valor e distinção”. A diligência foi executada com êxito, conseguindo os expedicionários , na mesma noite, a rendição da nau inimiga, que, com a guarnição de 28 homens e o seu carregamento de fazendas, foi, pela manhã, conduzida para Mazagão .” Miranda Henriques, deixando o governo do Rio Grande do Norte em 1751, regressou ao Reino, segundo se presume.Em 22 de abril de 1755, assumiu o Governo do Ceará, deixando-o em 11 de janeiro de 1759. Em 20 de abril de 1761, assumiu o governo da Paraíba, que deixou a 20 de abril de 1764. Era pobre , segundo o testemunho dos contemporâneos e segundo se infere da altiva carta que endereçou ao rei, em 20 de março de 1757, queixando-se das misérias que passava, com o ridículo vencimento de Cr.$ 400,00 anuais, tendo chegado ao ponto de tomar um empréstimo de Cr.$ 4.100,00 ao cofre dos órfãos, e se não fora a intervenção de seu secretário, Caetano José Correa, figuraria o nome da autoridade mais graduada da capitania entre os daqueles que mendigaram do governo esse pequeno obséquio (Barão de Studart – Notas para a História do Ceará). Endereçou uma petição ao Capitão General de Pernambuco, requerendo uma anuidade de Cr.$ 200,00 para residência, pois no Rio Grande do Norte tinha direito à aposentadoria, e no Ceará não a tinha, embora a tivesse o ouvidor. O Capitão General concedeu-lhe o favor pleiteado. Seu ato, porém, não foi aprovado, e Miranda Henriques foi intimado a restituir aquela importância ao erário. Durante os largos anos em que exerceu aquele cargo, em três Capitanias, não logrou nenhuma melhoria nos proventos que auferia: Cr.$ 400,00 anuais. Acabou, após uma permanência tão demorada no nordeste brasileiro, se afeiçoando à região, onde se fixou definitivamente, após a sua missão governamental na Paraíba. Adquiriu ali uma propriedade, tradicionalmente conhecida por “Bolandeira”, em Areia, proveniente de um primitivo engenho de descaroçar algodão. Seu primogênito e homônimo, patriarca sertanejo, era chamado “Xavier da Bolandeira’. Toda a família saída daquela terra mater passou a ser nomeada “Bolandeira”, como um título de nobreza, revivescência de velho costume feudal que vinculava à terra o destino de seus fundadores e povoadores. A família Miranda Henriques, no Nordeste, procede deste venerando Capitão-Môr, que faleceu em avançada idade, na Paraíba. Espalhou-se pelo Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco, e seus descendentes conservam aquelas virtudes esplêndidas que eram atributo do digno genearca. É uma grei imensa de fazendeiros, comerciantes, doutores, políticos, sacerdotes. Em Pernambuco nasceu Antônio Henriques de Miranda, e, na Paraíba, Manuel Lobo de Miranda Henriques, filhos de João José de Miranda Henriques, o segundo dos quais foi revolucionário em 1817, tendo permanecido preso nas Cadeias da Relação da Baía: Presidente das Províncias de Alagoas (1831) e Rio Grande do Norte (1833): deputado geral, eleito a e reconhecido, à Câmara nati-morta de 1842. Foi o pai de Aristides Lobo, que era, assim, um legítimo Miranda Henriques, nascido na Paraíba. Membro eminente desta família foi o Arcebispo D. Adauto Miranda Henriques, lustre do episcopado brasileiro, falecido em 1935. Era primo e amigo do meu avô materno, Augêncio Virgílio de Miranda Henriques. Em sua homenagem é que recebi, na pia batismal, o nome que eu tenho. Em uma de suas visitas pastorais pelo interior do Rio Grande do Norte, àquele tempo sob a jurisdição episcopal da Paraíba, fui por ele crismado, em Mossoró, onde residiam meus pais e avós. De S. Excia. Revma. recebi preciosas informações sobre as origens da família no Nordeste. Cartas infelizmente extraviadas quando transferi minha residência para o Rio de Janeiro. Da correspondência com que honrou, resta apenas um cartão, em que resolvia uma dúvida genealógica, assim redigido: “Exmo. Am.º e parente Dr. Adauto da Câmara. Afetuosas saudações. A causa da demora de minha resposta à sua prezada carta foi a pesquisa que fazer, sem nenhum resultado, infelizmente. Apenas fiquei certo do que supunha o Exmo. Sr. Dr. Soares (3), isto é, o chamado Capitão-Môr do engenho Bolandeira, na freguesia da Cidade de Areia, era o filho mais velho do Capitão-Môr que deixou o Governo desse Estado em 1751. Certamente esse título de Capitão-Môr seria de herança. Com os meus afetuosos cumprimentos, faço os mais sinceros votos de felicidade verdadeira ao nosso bom Deus. D. Adauto A. de Miranda Henriques. Paraíba, 12-VIII-1930.” Meu bisavô materno, Antero Frederico Borges de Miranda Henriques, era neto do Capitão-Môr e Governador Francisco Xavier de Miranda Henriques, entroncado, assim, na melhor gente lusitana. Faleceu quase centenário, em Parelhas, Rio Grande do Norte, aos 23 de abril de 1915, deixando uma descendência bíblica: 18 filhos, 110 netos, 119 bisnetos, segundo registrou “A República”, de Natal, noticiando o seu passamento. ________________________ (3)Desembargador Antônio Soares, escritor e linhagista, antigo Presidente da Corte de Apelação e da Academia de letras do Rio Grande do Norte. __________________________________________________ INSTITUTO GENEALÓGICO DO RIO GRANDE DO NORTE
Por Nélio Silveira Dias Júnior, “Felinto Lúcio: um músico excepcional, um orgulho potiguar Felinto é uma figura que nos enche de orgulho, lembrando-nos de que, se a luz está disponível para todos, o brilho é fruto de dedicação e esforço de cada um. Desde criança, Felinto Lúcio Dantas aprendeu com os pais os segredos da agricultura, e desenvolveu um profundo amor pela terra, acreditando que, cuidando dela, também estaria tratando de si mesmo. A terra lhe deu tudo: alimentação e ensinamentos e, nela, trabalhou até seus últimos dias. Nasceu em família numerosa, em Carnaúba dos Dantas/RN, em 1898, fazendo ali a sua morada, e do sertão, a inspiração. Além da terra, a sua paixão era a música. Sua vocação musical despertou ao assistir, com a banda filarmônica de Acari/RN, aos ensaios das músicas de seu primo Tonheca Dantas (1871-1940), compositor, dentre grande produção musical, da valsa Royal Cinema, entusiasticamente aplaudida no Brasil e no Exterior. Felinto começou, como relatou em entrevista, “como todo mundo, tocando um instrumento, depois dirigindo banda e, consequentemente, regendo-a, até chegar a composição”, mas, segundo ele, “nunca fiz nada que prestasse dentro dessa coisa toda”. Simplicidade à parte, Felinto foi grande em toda a música que fez, reconhecido no Seridó, no Rio Grande do Norte, no Brasil e no mundo. Um gênio mesmo. Com dinheiro suado da pequena agropecuária, Felinto pagou aulas com Pedro Arboés, professor de música da região. Aprimorado o seu talento, não tardou para trilhar o caminho da composição. A primeira composição fez aos 17 anos, o dobrado "Estreia"; a última, aos 88 anos, a valsa "Delzira Maria Dantas", homenagem a sua segunda esposa. Nesses 71 anos dedicados à música, construiu uma obra surpreendente, composta por 83 dobrados, 42 valsas, 36 obras sacras, 12 marchas, 9 hinos, 4 mazurcas, 4 choros. A música sacra de Felinto Lúcia era diferenciada. Compôs hinos, missas e novenas, destacando-se inúmeras partes dessas obras da liturgia católica, tais como: "Pai-Nosso", "Ave-Maria" “Gloria”, “Credo”, “Agnus Dei”, “O Salutaris Hostia”, “Kyrie”. São composições que iluminam corações e fortalecem a aproximação com o divino: melodias envolventes, em músicas que transmitem fé e suscitam adoração. Suas músicas deixaram o sertão do Seridó para ganhar notoriedade nos grandes centros do Brasil, como Rio de Janeiro, e mesmo da Europa. Sua música "Quinta Novena" foi executada na missa celebrada pelo Papa São João Paulo II, em 1997, na Catedral do Rio de Janeiro. Recentemente, no dia de Corpus Christi de 2021, foi cantado no Vaticano um Tantun Ergo, de Felinto Lúcio, tradicional hino eucarístico sobre a letra de São Tomás de Aquino, de 1264. Um seu “O Salutaris Hostia” também foi ouvido há pouco tempo no altar da Cátedra da Basílica de São Pedro, por ocasião da novena do Apóstolo. Esse Tantum Ergo Felinto Lúcio compôs “em 1957 em latim, para duas vozes. Comumente as suas obras sacras eram escritas para que duas de suas filhas cantassem durante a missa. Sua introdução foi inspirada no canto do pássaro Anu-branco" (periodicos.unespar.edu.br - O plantador de sons). No sertão do Seridó, a beleza verdejante da natureza se une à transcendência da música sacra de Felinto Lúcio Dantas, criando um cenário de encanto e devoção. Outro tipo de música ao qual Felinto se dedicou foram as valsas. Compôs várias delas, como, por exemplo, "Culpa e Perdão", "Adélia", "Lúcia Dantas", “Ana Dantas”, "Teresa Maia". Em 1978, por iniciativa do MOBRAL, lançou em um LP duplo algumas de suas obras, contando com a participação de grandes músicos do cenário nacional, sob a coordenação do maestro Radamés Gnattali, grande artífice da aproximação da música erudita e popular no Brasil. Em Natal, o lançamento desse álbum ocorreu no Palácio do Governo, em cerimônia solene, patrocinada pelo então Governador Tarcísio Maia, seu admirador. Com esse evento, o compositor se tornou mais conhecido em todo Estado e no País. Como lembra o poeta e ex-professor universitário Francisco de Sales Felipe, a quem Felinto Lúcio dedicou, em 1978, a marchinha Sales, suas músicas exalam espiritualidade e emoção, tocando profundamente a alma de quem as ouve. “É um Deus da música!” Para atender ao público da região, Felinto compôs também muitos dobrados para as bandas locais, peças que se ouvem frequentemente ainda hoje, geralmente em solenidades, às vezes desconhecendo os ouvintes e mesmo os músicos quem é o admirável compositor. Dentre tantos, citam-se "Mobral 59", "Caetano Dantas 58", "Paulo Lúcio Dantas 55", "Flávio Lúcio Dantas 57". A sua inspiração era a terra. Não compunha no luxo de vivendas ou gabinetes, mas, em sua maioria, trabalhando nas suas lavouras, a sol a pique, fazendo, muitas vezes, do cabo de sua enxada o seu lápis, rabiscando as notas musicais na areia do Rio Carnaúba. Só depois passava para o papel, pois a natureza era sua escola, como costumava dizer. Felinto Lúcio buscava preservar as tradições musicais do sertão, mantendo vivas as raízes e os valores culturais da região. Compunha para aquela realidade cultural, para o coro da igreja, as bandas locais. O hino da cidade de Carnaúba dos Dantas é de sua autoria, e é a prova disso. A Banda Filarmônica de Acari/RN, da qual passou a ser regente em 1920, atualmente tem seu nome. No largo em frente da sede da banda, está estátua sua, obra do artista Guaraci Gabriel, e iniciativa da Prefeitura Municipal, na qual Felinto exerceu o cargo de secretário de 1944/1968, com relevantes serviços prestados. O Governo do Estado do Rio Grande do Norte ofereceu a Felinto Lúcio, em 1986, medalha da ordem do mérito no maior grau, tendo-lhe prestado homenagens a UFRN e o IFRN. Felinto Lúcio faleceu em 1986, deixando saudade aos amantes da melhor música. Teve 30 filhos, sendo 14 com a primeira esposa, Antônia Jacinta de Medeiros, e 16 com a segunda, Delzira Medeiros Dantas. Todos homenageados em sua obra. Felinto Lúcio Dantas, "um plantador de sons". Seu talento e paixão pela música são evidentes em cada nota, levando os ouvintes a uma experiência transcendental. E, ao compartilhar sua música sacra, espalhou luz e inspiração por todo o Rio Grande do Norte, conectando as pessoas com o sagrado, e confirmando sua espiritualidade. Fontes: Fundação José Augusto (Adecon) Revista do Galo, n. 5, p. 31–42, 1 maio 2022 Canal do YouTube- Presto Música de Victor Dantas Tribunal do Norte, 4/6/2021 Francisco de Sales Felipe (Em conversas de alpendre) TVU – Memória Viva – Felinto Lúcio - 1982”
A misericórdia, virtude quaresmal Padre João Medeiros Filho A misericórdia é uma das faces da caridade e compaixão. O termo deriva do latim e significa etimologicamente ter o coração (“cor”) voltado para os pobres (“miseri”), estar em comunhão com eles. Entretanto, não se deve entender o significado da palavra pobre na dimensão socioeconômica, mas na semântica bíblica. Na Sagrada Escritura o étimo tem um sentido amplo. Lembra o carente, quem sofre física ou espiritualmente etc. Assim deve-se ler o texto do evangelista Mateus. Os despojados dos bens efêmeros alcançarão a felicidade, na medida em que serão saciados de Deus e suas graças. Assim como a pobreza, a misericórdia integra as bem-aventuranças do Evangelho. “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus; bem-aventurados os misericordiosos, pois eles alcançarão a misericórdia” (Mt 5, 3; 7). O misericordioso se compadece dos que têm carência no corpo ou na alma. Isto abrange a empatia com os que têm a vida árdua. A palavra inclui a atitude de quem consegue sair de seu egoísmo em busca dos outros, notadamente dos afligidos por todos os tipos de miséria material ou espiritual. Nas diferentes religiões, há convergências em relação ao significado do vocábulo misericórdia, incluindo o respeito pelos outros e a reverência pela vida. A teologia entende essa virtude, não apenas quando se volta para o próximo, de forma emocional, mas também, de modo eficaz, na medida em que se tenta superar a limitação e o padecer. Desde os primórdios do cristianismo, os fiéis praticam esse gesto de solidariedade com os sofridos, desvalidos, esquecidos, não só no plano espiritual, mas também corporal. Segundo os Atos dos Apóstolos, as primeiras comunidades cristãs consolidaram o cuidado com os órfãos, viúvas e doentes, expressando a caridade eclesial por meio dos diáconos, agentes da ternura da Igreja primitva (cf. At 6, 1-6). O momento é oportuno para repensar a função do diácono, realçando seu papel de ministro da ação misericordiosa, e não apenas como mero coadjuvante na liturgia. A misericórdia foi sendo introduzida na cultura ocidental, tornando-se um dos pilares da humanidade. Hoje, esta prática evangélica tomou formas secularizadas, algumas sistematizadas em programas sociais de governos. No entanto, várias têm se mostrado ineficientes. A Igreja continua expressando a sua face caritativa aos mais fracos, inspirada nos ensinamentos de Cristo. No nascedouro do cristianismo no Brasil, é marcante a postura de caridade evangélica realizada pelos jesuítas nas Santas Casas de Misericórdia, precursoras das instituições hospitalares e dos órgãos de previdência social. No Nordeste, destaca-se a obra de Padre Ibiapina com as Casas de Caridade. Dignos de reverência são os inúmeros orfanatos, creches, ambulatórios e escolas, criados e mantidos por congregações religiosas e paróquias. Na Bula “Misericordiae Vultus”, o Papa Francisco afirmou: “Tal dinamismo é uma das vigas que sustentam a vida da Igreja.” Assim expressara Santo Irineu: “Um dos sacramentos mais expressivos do Divino.” A credibilidade eclesial passa por esse caminho. Este não é um sentimento espiritual vago, teórico e abstrato, mas uma atividade responsável, abrangendo o amor de Deus por nós. O apelo misericordioso deriva da deficiência de um direito humano, inerente à própria criação. Tal carência necessita ser preenchida. É um clamor que convoca os cristãos a dar uma resposta efetiva e real, que tem seu fundamento na Palavra de Deus. Nosso julgamento final far-se-á a partir dos atos de misericórdia (cf. Mt 25, 35-46). Assim entendeu o Padre João Maria, “o santo de Natal”. Trata-se de conversão, não a uma ideia, mas à concretude do amor de Cristo. E isto é uma prática quaresmal. A Igreja deve ser ícone, imagem do Deus que revela seu afeto por nós. O amor do Pai celeste é pleno de ternura, clemência e tolerância. Sua benevolência se apieda de nós. É a dinâmica do afeto divino, que vem ao encontro do ser humano em suas necessidades, seja ele ou não pecador, tenha ou não fé no Deus que se solidariza com seu sofrimento. A graça de Cristo possibilita a nossa conversão e abertura ao próximo. É importante lembrar a recomendação do Mestre: “Sejam misericordiosos como o vosso Pai” (Lc 6, 36).

sábado, 2 de março de 2024

Jair Eloi de Souza 8 h · ASSIM ESCREVI SOBRE VELHOS ENGENHOS NO MEU SERIDÓ. Na idade meã do Século XIX, seguindo o exemplo dos paraibanos e cearenses, instalados e na sua plenitude, funcionavam os engenhos de banguê nas terras confins do Seridó. O estalar da quebradeira da cana de açúcar prenunciava o fabrico da rapadura de banco. Por esses tempos, a mão de obra era suprida das tendas cativas. As colônias latinas viviam a agudez do tráfico dos afro-descendentes, vindos das terras d’além mar, sitas na mama África. É bem provável que o cultivar da cana no Seridó, no contexto das terras massapesadas de baixio e nos brejinhos de revências de açudes, tenha sido influenciado pelos cearenses, pois estes, ocupavam com esta cultura o sopé da Serra do Araripe, no sul do Ceará, já que, na chã, havia o cultivo da mandioca para a farinhada e do próprio café. De outra feita, a aquisição de rapadura e da farinha no Cariri, embora ambas fossem de excelente qualidade, demandava custos altos, ante a longa viagem no coice da burrarada. E, ainda, riscos para os velhos matutos comboieiros dos Sertões do Seridó, face a presença de salteadores a partir do vale do Rio do Peixe e, principalmente, nas cercanias do entroncamento de todas aquelas cidades da vizinhança do Crato, como Barbalha, Missão Velha, Jardim e o próprio Juazeiro. Este, em razão das pregações do Padre Cícero, transformou-se numa urbe não só frequentada por fanáticos, mas, também, por cangaceiros, jagunços, gente de boa e má índole, que se albergavam nos feudos dos Coronéis, cuja truculência não guardava distância dos baianos e alagoanos do último quartel do Século XIX e das primeiras décadas do Século XX. Nos Sertões do Seridó, o fabrico da “rapadura de banco”, tinha destinação para o consumo da própria região. Aliás, o doce, que era utilizado para todas as serventias, era mesmo com exclusividade a rapadura, principalmente nos feudos rurais. Coadjuvante no torramento do café, na confecção de doces e bolos. Não é exagero se afirmar que a rapadura era o alimento mais presente em todas as formas e horas de refeição do sertanejo. No bisaco do caçador, no badaneco do vaqueiro, no saco de boca amarrada do enxadeiro, na carona do viajante e comboieiros, no bornal do cangaceiro, nos alforjes dos rastejadores ou matadores de onça no sertão antigo, sempre havia um naco de rapadura e uma porção de farinha para refeição rápida. No Município de Jardim de Piranhas e adjacências, conheci, ainda infante, alguns engenhos de moagens de cana: No Braz, o de Quinca Salvino; na fazenda Três Riachos, o do velho Manoel Ambrósio de Queiroz; nos Pocinhos, o de Vigolvino; no Góis, o do velho Cição; e, ainda, na Saudade, o engenho de Manoelzinho Cafunbó, este último já no Município de Timbaúba dos Batistas, e mais alguns que ouvia falar e, lamentavelmente, não cheguei a visitá-los. Antes da floração das craibeiras amarelas, na primavera setembrina, as velhas moendas começavam a produzir a garapa, que se destinava aos grandes tachos e gamelas, no fabrico da rapadura e de batidas temperadas. O engenho primitivo ou de banguê era movido a boi, um trabalho que começava no “quebrar da barra”. A estação das moagens tinha grande simbologia para o sertanejo. Era um trabalho coletivo, com funções especificadas, o permeio da garapa de tacho em tacho, finalizando na gamela. Todos tinham um conhecimento pragmático do momento em que a calda deveria passar para o tacho seguinte. No entanto, a última palavra era do mestre-da-rapadura, uma similaridade do mestre-de-açucar nas usinas de refino. As velhas moendas do meu Sertão foram aposentadas. Não se ouve mais o estalo do chicote no açoite da boiada: um avanço. Porém, de consequência, não se encontra mais a qualidade nas rapaduras ainda produzidas. Nas feiras livres, é comum se verificar o selo de terras pernambucanas, produto com teor significativo de açúcar refinado. A produção do Cariri perdera em qualidade. A brejeira de garajal está mais preta e salobra. O homem destruiu a nobreza das terras massapesadas e de baixio em revência. Que pena! Meu Sertão não era assim. J.E.S.

sexta-feira, 1 de março de 2024

ENCONTRO COM A POESIA: TRÊS JOIAS DO ROMANTISMO Horácio Paiva * Neste intervalo contemplativo, sob o domínio da emoção romântica, estampo três caros poemas, lidos e relidos no tempo que me coube: O INFINITO, do italiano Leopardi; TRISTEZA, do francês Musset; e ODE SOBRE UMA URNA GREGA, do inglês Keats. Os seus tradutores são, pela ordem: Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e Augusto de Campos. No final, introduzo uma nota sobre o genial poeta romeno Eminesco, acompanhada de uma de suas poesias, um soneto traduzido por Nelson Vainer. Há uma segunda nota em que apresento a tradução d’O INFINITO feita por Ivo Barroso. Muito boa também. Mas dei preferência à de Vinicius por amá-la há muito tempo e sabê-la de cor. Vejamos então: GIACOMO LEOPARDI (1798-1837) O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma, e esta sebe, que de tanta parte Do último horizonte o olhar exclui. Mas sentado a mirar, intermináveis Espaços além dela, e sobre-humanos Silêncios, e uma calma profundíssima Eu crio em pensamentos, onde por pouco Não treme o coração. E como o vento Ouço fremir entre essas folhas, eu O infinito silêncio àquela voz Vou comparando; e vem-me a eternidade E as mortas estações, e esta, presente E viva, e o seu ruído. Em meio a essa Imensidão meu pensamento imerge E é doce o naufragar-me nesse mar. ALFRED DE MUSSET (1810-1857) TRISTEZA Eu perdi minha vida, e o alento E os amigos, e a intrepidez, E até mesmo aquela altivez Que me fez crer no meu talento. Vi na Verdade, certa vez, A amiga do meu pensamento; Mas, ao senti-la, num momento O seu encanto se desfez. Entretanto, ela é eterna, e aqueles Que a desprezaram - pobres deles! - Ignoraram tudo talvez. Por ela Deus se manifesta. O único bem que ainda me resta É ter chorado uma ou outra vez. JOHN KEATS (1795-1821) ODE SOBRE UMA URNA GREGA I Inviolada noiva de quietude e paz, Filha do tempo lento e da muda harmonia, Silvestre historiadora que em silêncio dás Uma lição floral mais doce que a poesia: Que lenda flor-franjada envolve tua imagem De homens ou divindades, para sempre errantes, Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo? Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes? Que louca fuga? Que perseguição sem termo? Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem? II A música seduz. Mas ainda é mais cara Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom; Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara, O supremo saber da música sem som: Jovem cantor, não há como parar a dança, A flor não murcha, a árvore não se desnuda; Amante afoito, e o teu beijo não alcança A amada meta, não sou eu quem te lamente: Se não chegas ao fim, ela também não muda, É sempre jovem e a amarás eternamente. III Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor Das folhas e não teme a fuga da estação; Ah! feliz melodista, pródigo cantor Capaz de renovar para sempre a canção; Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante! Para sempre a querer fruir, em pleno hausto, Para sempre a estuar de vida palpitante, Acima da paixão humana e sua lida Que deixa o coração desconsolado e exausto, A fronte incendiada e a língua ressequida. IV Quem são esses chegando para o sacrifício? Para que verde altar o sacerdote impele A rês a caminhar para o solene ofício, De grinaldas vestida a cetinosa pele? Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente Ou no alto da colina foi despovoar Nesta manhã de sol a piedosa gente? Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe Em tuas ruas, e ninguém virá contar Por que razão estás abandonada e triste. V Ática forma! Altivo porte! em tua trama Homens de mármore e mulheres emolduras Com galhos de floresta e palmilhada grama: Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas Tal como a eternidade: Fria Pastoral! Quando a idade apagar toda a atual grandeza, Tu ficarás, em meio às dores dos demais, Amiga, a redizer o dístico imortal: “A beleza é a verdade, a verdade a beleza” - É tudo o que há para saber, e nada mais. NOTAS: (1) Dentre tais expoentes europeus - e outros de igual magnitude - uma estrela brilha na Romênia e seu brilho aquece o ocidente, embora pouco notado entre nós: MIHAIL EMINESCO, aquele que disse o seu epitáfio nesses versos: “Tenho ainda um desejo: Na tarde silente Me permitais morrer Na beira do mar.” Conheço-o graças à ANTOLOGIA DA POESIA ROMENA, traduzida e organizada por Nelson Vainer, editada em 1966 (pela Editora Civilização Brasileira), e que tenho a subida honra de possuir desde então, como presente do hermano Hermano. Dele faz rasgados elogios Giuseppe Ungaretti: “Raramente se encontra na literatura dos últimos dois séculos uma figura de escritor e poeta mais complexa e mais completa que a de Mihail Eminesco.” “(...) poeta de sentimento torturado e ardente até à conquista do mais alto esplendor, que faz dele um dos maiores poetas do seu tempo e de todos os tempos, através da humanidade, Eminesco permanece para sempre um dos mestres da palavra poética profundamente inspirado.” Bernard Shaw, em carta dirigida à escritora Sylvia Pankhurst que, em 1930, publicara, em Londres - e pela primeira vez em inglês -, uma coletânea de poemas de Eminesco, situa o poeta entre os maiores poetas românticos do século XIX. O meu amigo e poeta, o norte-rio-grandense Jarbas Martins, que acolhe e coleciona sonetos, certamente gostará deste, romântico. Não é a obra-prima de Eminesco, geralmente assim considerado o seu poema LÚCIFER (Estrela da Manhã), um longo de 46 quadras, ou seja, 184 versos. Mas o soneto escolhido é belo e traz, bem talhada, a medida do romantismo: SONETO Quando a própria voz dos pensamentos se cala, e em mim ressoa um canto doce e piedoso então, te invoco; ouvirás o meu apelo? Das brumas frias em que nadas, irás libertar-te? Irão iluminar a noite profunda os teus olhos grandes, portadores de paz? Ressurges da sombra dos tempos idos, Para ver-te voltar - como em sonho, assim, viva! Desces devagar... perto, mais perto, aconchegas-te novamente sorrindo à minha face, oh, teu amor com um suspiro mostra-o, com tuas pestanas tocas as minhas pálpebras, que eu sinta a vibração do teu abraço perdida para sempre, eterna adorada. (2) E, novamente, O INFINITO de Leopardi, agora na tradução de Ivo Barroso: O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma e esta sebe, que de extensa parte Dos confins do horizonte o olhar me oculta. Mas, se me sento a olhar, intermináveis Espaços para além, e sobre-humanos Silêncios e quietudes profundíssimas, Na mente vou sonhando, de tal forma Que quase o coração me aflige. E, ouvindo O vento sussurrar por entre as plantas, O silêncio infinito à sua voz Comparo: é quando me visita o eterno E as estações já mortas e a presente E viva com seus cantos. Assim, nessa Imensidão se afoga o pensamento: E doce é naufragar-me nesses mares. ................................................................................................................................ (*) Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.
VIROU ARAPUCA Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Mais do que o Imposto de Renda, o IPTU, a dengue, a chikungunya, o Covid, o furor das multas de trânsito é a nova virose que enerva o natalense. O Código Nacional de Trânsito está se tornando uma arma nas mãos dos guardas despreparados, muito mais perigosamente do que o próprio veículo na direção dos motoristas imprudentes. Como o trânsito é uma matéria altamente disciplinadora, um código que vem para punir os seus contraventores deve, de partida, merecer um inicial trabalho pedagógico de orientação e não, ser aplicado doidivanamente por agentes mal humorados. O Código de Trânsito, que é uma das melhores coisas que aconteceu nesse país de contravenções, está se transformando num abuso porque aplicar a lei já é difícil para juízes e desembargadores, avalie para um guarda de trânsito, desqualificados, com uma caneta à mão e o sentimento do mundo. Outro dia, eu descia a Hermes da Fonsêca no sol quente do meio dia e contemplei uma cena insólita no canteiro central da avenida, em frente a Escola Doméstica. Óculos no meio do nariz, como de costume, um jornalista e amigo manuseava as tórridas páginas do código para explicar ao guarda impassível e doutorável, as contradições da lex talionis. Comigo aconteceu na Prudente de Morais, sentido norte/sul. Antes do sinal luminoso da rótula do Arena das Dunas parei o automóvel quando o velho semáforo amarelou. Senti-me obediente e disciplinado. Pelo retrovisor, atrás de mim, flagrei um guarda rabiscando à bordo de uma moto verde-amarela. Procurei, assustado, a infração. Dois centímetros dos pneus dianteiros sombrearam a faixa branca do pedestre. Pensei protestar mais adiante. Lembrei-me da tolerância cristã. Recordei os arroubos parlamentares de Nélter Queiroz certa vez e desisti da contestação olímpica e retilínea. Às vezes, eu reflito que existe, uma deliberada intenção de transformar a STTU em empresa de economia mista. Com o volume de recursos provenientes das multas desvairadas, dificilmente nenhum outro órgão estatal suplantaria a sua receita. Não se trata de oposição ao sistema de trânsito. Mas, de uma postura cética ante uma avalanche de multas sem um critério orientacional que eduque o contraventor sem revoltá-lo. Sem que ele veja no manual um instrumento discricionário, antidemocrático e ditatorial. As infrações mínimas de trânsito estão sendo punidas de uma forma geométrica, caótica e até irracional. A situação é preocupante. O cidadão comum está sendo confundido com os contumazes irresponsáveis do trânsito. A multa virou rotina. O natalense, já pensa vender o seu carro, porque a multa ingressou no seu orçamento mensal assim como as taxas de luz, água, telefone, IPTU, cartão de crédito, supermercado, etc., além da ferocidade anual do leão do Imposto de Renda. Dirigir hoje em dia, além de ser perigoso para a vida também o é para o bolso. Tudo depende de uma acelerada ou de um freio brusco, no lusco-fusco, dos bruxos à espreita, de lápis e papel à mão. (*) Escritor